Repressão a estudantes durante a ditadura - Foto: Arquivo/Instituto Vladimir Herzog

Por Arthur Serra*

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar, da RedeTV!, no dia 27 de fevereiro de 2024, em referência aos 60 anos da ditadura empresarial-militar de 1964 disse: “Eu, sinceramente, não vou ficar remoendo e vou tentar tocar esse país para frente”.

Tal postura nos fez lembrar uma frase do ex-governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola (1983-1987/1991-1994), que dizia: “Se a Rede Globo for a favor, somos contra. Se for contra, somos a favor”.

Pensando na declaração do presidente Lula sobre esquecer o golpe empresarial-militar de 1964 podemos dizer, se Lula é a favor do Brasil não recordar o golpe e os vitimados de 1964, somos contra.

A quem interessa não lembrar o golpe empresarial-militar de 1964 e a quem isso beneficia?

A nosso ver, tal fala interessa a dois grupos: ao governo federal na busca de não criar tensões com os militares e às Forças Armadas para não recordarem toda a barbárie contra civis e militares legalistas opositores à ditadura.

A postura do presidente é reforçada por pesquisa do Instituto Datafolha realizada entre 19 e 20 de março de 2024, onde 59% dos entrevistados o aprovaram e 33% desaprovaram.

Aqueles que desaprovam são pessoas contra a ditadura de 1964 e suas barbáries, entendem a relevância histórica de rememorar tal período para que nunca mais se repita e compõem o grupo de eleitores que votou em Lula na eleição de 2022. Já o grupo que aprovou o posicionamento presidencial é composto, sem dúvidas, por cidadãos que votaram na chapa da situação à época, cujo candidato não reconhecia esse período como repleto de violência contra a sociedade civil organizada.

A fala de Lula é um equívoco, pois dá força aos setores sociais que classificam essa “página infeliz da nossa história” como “ditabranda”, em que, comparativamente às ditaduras que assolaram os países vizinhos, aqui no Brasil não teria havido grandes violações aos direitos humanos, uma versão que demonstra o pouco conhecimento das informações existentes nos arquivos históricos, em particular do Serviço Nacional de Informações (SNI). O posicionamento do chefe do executivo – e vale lembrar, Comandante Supremo das Forças Armadas, conforme o art. 142 da Constituição Federal de 1988 – foi desrespeitoso para com os presos políticos na ditadura, seus familiares, pesquisadores do tema e ativistas.

Em virtude dos 60 anos da ditadura empresarial-militar e como uma desobediência civil ao governo federal, o Comitê Popular de Santos por Memória, Verdade e Justiça promoveu quatro atividades para levar a ditadura e suas vítimas em Santos ao centro do debate com a sociedade.

A primeira delas ocorreu em 1º de abril de 2024. Foi no bairro do Boqueirão, em Santos, ao lado de um casarão em ruínas onde, segundo José Luiz Baeta (membro do comitê), funcionou a sede do antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) da cidade, local em que eram levados presos, trabalhadores da Baixada Santista e lideranças sindicais. A proposta do comitê é que o imóvel seja tombado tendo em vista a preservação da memória da cidade de Santos e da ditadura que atingiu os santistas.

A segunda atividade foi o “Seminário Internacional: reparação, memória e justiça de transição – os casos de Namíbia, Argentina e Brasil”, sediado na Universidade Católica de Santos (UniSantos) em 10 de abril de 2024.

O objetivo do seminário foi debater a similaridade do impacto da violência estatal contra a maioria de sua população em prol dos interesses de alguns, em situações aparentemente distintas. No caso, o genocídio feito na colonização da Namíbia, a ditadura empresarial-militar na Argentina a partir do caso da Ford, em 1976, e, no caso brasileiro, a colaboração da Companhia Docas de Santos (CDS) com o Estado na perseguição, espionagem e prisão de trabalhadores portuários durante a ditadura de 1964.

De forma remota a professora universitária e ministra da Saúde e dos Serviços Sociais da Namíbia e professora, Esther Muinjangue, recordou a violência do processo de colonização e a importância de se promover essa discussão e a necessidade da permanente mobilização para que nunca mais se repita.

Entre as pessoas que participaram de forma presencial estavam Mbakumua Hengari, presidente da Ovaherero and Ovambandery Genocide Foundation (OGF); Pablo Gustavo Lionto, advogado e ativista dos Direitos Humanos que tratou da relação entre a Ford e o Estado argentino; Antônio Fernandes Neto, ex-estivador do Porto de Santos, pesquisador e escritor, que abordou as graves violações na ditadura brasileira; Adriana Gomes Santos, historiadora, professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR), que foi tradutora no evento; Milena Fonseca Fontes, doutoranda em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) que tratou da relação entre a Companhia Docas de Santos e o Estado nos atos de abusos de legalidade e graves violações contra os trabalhadores e cerceamento às liberdades civis da população santista.

A terceira atividade, já tradicional em Santos e que acontece desde 2015, o “Sítio de Consciência Raul Soares Nunca Mais” ocorreu em 24 de abril de 2024, data que marcou os 60 anos da chegada do navio Raul Soares a Santos, onde ficou ancorado entre a data de chegada a 2 de novembro de 1964.

A embarcação foi transformada em prisão, um local com celas de tortura. Em uma dessas celas a temperatura atingia mais de 40 graus e era denominada “El Moroco”, a segunda, repleta de dejetos, recebeu o nome de “Casablanca”, a terceira era inundada de água e chamou-se “Night and Day”. Os nomes faziam referência a três casas noturnas de Santos da década de 1960. E o último dos espaços de tortura era o frigorífico do velho navio.

No navio-presídio foram presos diversos profissionais, como militares legalistas, professores universitários, médicos, funcionários da Companhia Docas de Santos, da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), da Refinaria Presidente Bernardes-Cubatão (RPBC), estivadores, entre outros.

A maioria dos trabalhadores era de lideranças sindicais vinculadas a partidos de esquerda da época. A justificativa para a prisão dos trabalhadores era serem “elementos perigosos”. Porém, o “crime cometido” foi participarem de greves entre 1959 e 1963 por melhores condições de trabalho.

Em 2022, o Brasil se livrou de um governo que flertava com as regras deste estado de exceção que caracterizou a ditadura ameaçando as instituições da República. Se o governo Lula, eleito como paladino da defesa da democracia, quer preservá-la e não entregá-la aos “filhotes da ditadura” – como diria Leonel Brizola – é preciso sempre recordá-la, assim como recordar suas vítimas, cidadãos com consciência social, opositores daquela ditadura instaurada em 1964.

Sempre é importante falar sobre o tema da ditadura instaurada pelo empresariado multinacional em parceria com os militares, principalmente quando se completam 60 anos do golpe de 1964, para aqueles que dominam o assunto e, principalmente, para os que não conhecem ou fingem desconhecimento.

Essa é uma forma de se compreender o passado e evitar que erros como a eleição da chapa presidencial vencedora de 2018 – que representava as ideias dos golpistas de 1964 – ocorram em nosso país, tão necessitado de memória sobre a sua própria história.

*Arthur Serra é historiador e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisador, membro do Centro de Estudos de História da América Latina (CEHAL) e militante dos Direitos Humanos.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.