Por Gines Salas*
Um time jovem majoritariamente formado por acadêmicos com pouca experiência na máquina pública e um secretário de Finanças experiente, mas austericida. Isso numa cidade onde a arrecadação é baixa, as ruas são esburacadas, os aparelhos públicos são insuficientes, a zeladoria é deficiente, a violência é uma ferida aberta e as enchentes são um pesadelo. O que esperar?
Um amigo, o qual respeito e que conhece bastante de política, disse uma vez que é necessário esperar três meses para se avaliar com maior rigor uma gestão. Bem, até o momento, o que se viu em São Vicente foi uma administração bastante atrapalhada. A cidade segue com inúmeros problemas em praticamente todas as áreas, como sempre teve, mas que o atual prefeito insistia em criticar, como quando era apenas um aspirante a chefe do Executivo, falando que questões como mobilidade urbana, falta de pavimentação de ruas, alagamentos, etc., seriam resolvidos com “gestão técnica” e “preparo”. Ora… Vejam: que administração pública não possui quadros técnicos?
Duas pastas importantes do atual governo estão sendo geridas por secretárias que não possuem vínculo com a cidade e, coincidentemente, são as que mais recebem críticas. Michelle Santos, da Saúde, atuou na mesma função em Peruíbe anos atrás. A falta constante de médicos nos plantões do Hospital do Humaitá e no CREI, a não abertura dos prontos-socorros do Jardim Rio Branco e da Linha Vermelha, o não pagamento das terceirizadas da Saúde, o corte no envio de remédios para o Lar do Amparo ao Idoso, a epidemia de Covid-19 e a dengue – a cidade é a campeã disparada em número de casos na Baixada Santista – são algumas das várias dores de cabeça que o prefeito já teve que lidar em poucos meses de governo.
Já a secretária da Educação, comandada por Nívea Marsili, educadora que veio de Guarulhos substituir o primeiro nome escolhido por Kayo, também recebe inúmeras queixas. Há a acusação de que o estatuto do magistério não tem sido respeitado pela atual administração. O processo de implementação sem consulta da categoria de uma Escola Cívico-Militar na Área Continental da cidade também foi motivo de contestação da parte de muitos professores, que declaram que o prefeito não dialoga. Existe também o fato de os funcionários terceirizados estarem recebendo mal e porcamente, com atrasos constantes de salários.
A gota d’água, no entanto, diz respeito à insistência do prefeito e da secretária em manter as escolas abertas. Mesmo sem aulas presenciais, equipes gestoras e funcionários dos setores administrativos – limpeza, merenda, inspetoria, secretaria etc. – estavam trabalhando diariamente nas escolas, atendendo ao público, apesar do atual pico de contaminações ter sido previsto por infectologistas com antecedência. Kayo foi o último prefeito da região a decretar o fechamento das escolas particulares, assim como só decretou o fechamento das escolas municipais no último dia 19, após uma diretora da rede ter sido internada com Covid-19. Já era tarde demais. Edna Storino, diretora da EMEF União Cívica Feminina, faleceu na última segunda-feira (22), para revolta dos professores da rede, que em geral, votaram em Kayo no ano passado.
Para coroar a quantidade excessiva de críticas ao seu governo, Kayo decretou lockdown municipal, acompanhando os prefeitos da região, que decidiram pela medida em conjunto, durante reunião do Condesb. O fechamento do comércio gerou revolta em muito de seus eleitores, que se sentem traídos. Para angariar votos dos negacionistas e da extrema direita durante o processo eleitoral, Kayo teceu críticas públicas às políticas de distanciamento social aplicadas por João Doria (PSDB), se comprometendo a não decretar lockdown caso fosse eleito.
Apesar de todos os problemas, o atual prefeito mantém uma agenda de lives e stories constante. O marketing político e o abuso do uso das redes sociais têm sido uma marca de seu mandato. Mais ou menos inspirado em João Doria, no deputado estadual Kenny Mendes (Progressistas) e no ex-prefeito de Colatina/ES, Sérgio Meneguelli (MDB) – com quem fez live no ano passado –, Kayo aparece com frequência usando uniforme de outras profissões, exercendo funções braçais que não caberiam a ele.
Registra também, sempre que pode, o horário tardio em que deixa o Paço Municipal, para mostrar supostamente o seu empenho e árduo trabalho. Apesar disso, com os problemas que a cidade enfrenta, essas postagens têm cada dia mais irritado seus eleitores, cada vez mais impacientes.
Mas afinal, por qual motivo Kayo tem tido tantos problemas? O meu palpite é que há uma falta de compatibilidade entre ideia e realidade. Seu discurso não combina com o modo de fazer política em São Vicente, nem com os recursos limitados da cidade. Aliás, o discurso de Kayo não se aplica em lugar algum. Para ganhar a disputa do 2º turno, o prefeito fez acordos políticos com velhos grupos da política local e com igrejas neopentecostais.
Fez por ser necessário no nosso sistema democrático – apesar da qualidade questionável de alguns aliados –, que exige a criação de coalizões em prol da governabilidade. Acontece que, antes de ser eleito, a proposta era outra: Kayo defendia uma “nova política”, neutra, sem acordos, troca de favores ou loteamento de cargos. Talvez, de fato, acreditasse nisso, já que foi o que aprendeu.
Kayo Amado é um fenômeno eleitoral que soube se aproveitar de um “vácuo político” que existia em São Vicente. O que poucos dizem, no entanto, é que foi treinado desde cedo para isso. Um estranho em São Vicente, cidade com a maior população negra da Baixada Santista e que possui cerca de 90 mil pessoas morando em áreas de ocupação, é preciso considerar que Kayo teve uma formação de elite, algo para poucos em nosso país.
Descendente de judeus poloneses e expoente da classe média, cursou o Ensino Fundamental em escolas particulares e o Ensino Médio no rigoroso Instituto Federal de Cubatão. Formou-se em Gestão Pública na USP e, de lá, fez inúmeras especializações que ele propagandeia com frequência, inclusive no exterior. A mais importante e a que melhor o sintetiza, no entanto, ele cita com pouca frequência.
Kayo pertenceu a grupos de renovação política financiados por empresários. Integrou a primeira turma do RenovaBR e foi associado à Fundação Lemann, que leva o nome do segundo homem mais rico do Brasil.
O que significa pertencer a grupos de renovação política? Significa ser jovem, branco e ter tido uma formação acadêmica privilegiada. E, estranhamente, ser coincidentemente liberal nas pautas econômicas e favorável à maioria das reformas antipovo aplicadas desde o governo Temer – apesar do RenovaBR se reivindicar uma escola de formação política “apartidária”, se é que isso é possível (É… não é, não!).
Os nomeados grupos de renovação política, como o RenovaBR, Acredito e a RAPS são frequentemente acusados de serem “partidos dos empresários”. Os integrantes desses movimentos, entre outras características, evitam polarizações, acreditam com veemência na imparcialidade das instituições burguesas e na existência de um modo de fazer gestão estritamente técnico, puro e supostamente despolitizado, como aponta a socióloga Sabrina Fernandes, que analisou o fenômeno no livro “Sintomas Mórbidos”.
Espalhados em partidos diferentes, inclusive em partidos de esquerda, os integrantes desses grupos costumam votar juntos na maioria das pautas, muitas vezes contrariando a própria legenda partidária na qual foram eleitos. O caso mais famoso ocorreu na votação da reforma da previdência em 2019, quando Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES) contrariaram a orientação de PDT e PSB, respectivamente, ajudando a aprovar a reforma.
Isso não se dá por acaso. De fato, os movimentos de renovação política existem para votar o que defendem aqueles que os financiam: os empresários. Nos encontros desses movimentos, Jorge Paulo Lemann aparece com frequência perguntando “Quem aqui quer ser presidente?”, levando centenas de jovens ambiciosos ao delírio. E é para isso que esses jovens brancos privilegiados são formados: para serem presidentes e atenderem aos interesses da burguesia. É a esse grupo que Kayo pertence e é para ser presidente que foi criado. Mas antes de ser presidente, Kayo ensejou ser prefeito de uma cidade que mais parece um município da Baixada Fluminense perdido no litoral paulista. Foi uma boa ideia? Tenho minhas dúvidas…
Kayo tinha 21 anos e compunha o PV quando disputou a primeira eleição como candidato a vereador em 2012, recebendo uma votação expressiva apesar dos poucos recursos. Em 2016, seguiu Marina Silva e se filiou à recém-criada Rede Sustentabilidade. Agora, disputaria como candidato a prefeito em uma coligação com o PSOL, ao lado de Maykon Rodrigues, professor da rede municipal de Cubatão e atuante no meio sindical.
Com pouco tempo de TV, baixo orçamento para a confecção de materiais e focando a campanha nas redes sociais, Kayo conseguiu a façanha de se sobressair no processo eleitoral há poucos dias do 1º turno, ao participar do debate na TV Tribuna. Foi uma participação que só se deu através da pressão dos eleitores e dos mandatos parlamentares do PSOL, já que, arbitrariamente, as filiais da Rede Globo em todo o país se negavam em receber candidatos do PSOL e da Rede Sustentabilidade nos debates televisivos.
Kayo e seu grupo político acertaram na estética. Jovem e bem articulado, Kayo era diferente de todos os candidatos que estavam ali presentes. São Vicente, como já dito, é uma cidade pobre, inclusive de quadros políticos. Dominada desde 1996 pelo mesmo grupo político, o do ex-governador Márcio França, havia no eleitorado uma vontade angustiante de votar em algo novo que não fosse a velha oligarquia arcaica que criou uma hegemonia eleitoral.
Declarando-se contrário ao loteamento de cargos, à corrupção e com a legitimidade progressista de estar coligado a um partido de esquerda, Kayo recebeu uma votação expressiva e por pouco não obrigou a cidade a realizar um 2º turno. O discurso tecnicista de gestão profissional e fiscalista, de corte de gastos e otimização da máquina, típico de um liberal formado nas fileiras do RenovaBR, já estavam ali presentes. O que não estava presente era o seu pragmatismo, que veríamos em 2020.
Em 2019, um ano antes do processo eleitoral, Kayo migrou para o seu terceiro partido, o Podemos, apadrinhado pela deputada bolsonarista Renata Abreu. Um ano antes disputou para deputado federal na decadente Rede Sustentabilidade – que definhou cedo –, conseguindo 54 mil votos, o que não foi suficiente para elegê-lo. No Podemos, legenda mais leal ao bolsonarismo nas votações do Congresso, partido que tem investido pesado em candidaturas jovens, Kayo teria o apoio financeiro que não teve nos outros partidos em que esteve filiado. Sua coligação foi formada ainda com o DEM, do deputado estadual Paulo Corrêa Junior, e sua candidatura recebeu o apoio da família Leite, que funciona como uma espécie de “mecenas” da política vicentina.
Por quatro anos, bem ao estilo RenovaBR, Kayo evitou qualquer tipo de polêmica ou posição política mais incisiva, mesmo sendo anos tão intensos e polarizados, como já sabemos. Na apertada disputa eleitoral, desbancou o então prefeito Pedro Gouvêa (MDB), representante da oligarquia local, e Solange Freitas (PSDB). Solange é ex-repórter do principal veículo de imprensa da região, há décadas conhecida pelo eleitorado. Ela representava, então, o partido que domina sete das nove cidades da Baixada Santista. Não foi uma simples vitória. Foi uma vitória acachapante, que demonstra a força da sua figura política.
Para vencer, no entanto, Kayo não se furtou em receber apoios de caciques da política local, como já foi falado, mesmo daqueles outrora ligados ao francismo. Kayo ainda virou as costas para o campo progressista que votou nele em 2016, buscando votos da extrema direita e das igrejas, se declarando contra a ideologia de gênero. O grosso desse apoio está representado pela aliança com o Republicanos, legenda fortemente ligada ao evangelismo.
Além dessas alianças, Kayo contava com a ajuda de um grupo de pessoas que o apoiava há muitas eleições. De maioria jovem, são lideranças com pouca ou nenhuma experiência com a máquina pública, que em geral se formou nos mesmos grupos de renovação política de Kayo, defensores, portanto, da abstrata “nova política”. Seu chefe de Gabinete é Mario Tito, advogado de 30 anos. Como chefe de Gabinete da Secretaria de Administração, Kayo nomeou o jovem Iago Ervanovite, de 26 anos, vindo de São José dos Campos.
Em geral, os novos nomes da administração municipal são formados por gente bastante jovem, com rico currículo Lattes e pouca experiência na máquina pública. Uma das raras exceções é a de Rodolfo Amaral, secretário de Finanças, que trabalhou no primeiro mandato de Beto Mansur, em Santos, quando os servidores santistas ficaram anos sem reajuste. Fora esses, o restante dos nomes é ligado a ex-francistas e igrejas.
É possível equilibrar gestão “pura”, autodenominada técnica, com os interesses de grupos políticos obscuros numa cidade como São Vicente, que tem a 6ª arrecadação da Baixada Santista, mas que é a 2ª mais populosa?
Acho que já estamos obtendo a resposta.
*Gines Salas é historiador e militante do PSOL em São Vicente.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista