Foto: Fábio Pozzebom/Agência Brasil

Por Danilo Tavares*

No Brasil inteiro, incluindo cidades como São Paulo e na Baixada Santista, a última eleição expôs um fenômeno de profundo descontentamento e distanciamento da população em relação ao processo político. Com altas taxas de abstenção, votos nulos e brancos, uma grande parcela do eleitorado deixou claro o descrédito nas instituições e a desilusão com o sistema atual. Esse fenômeno reflete mais que uma apatia: revela uma crise de subjetividades e uma erosão da percepção coletiva, construída historicamente por desigualdades e violências, pela falta de reparação social e pela intensificação do discurso ultraliberal, que coloca a responsabilidade do sucesso exclusivamente sobre os ombros do indivíduo.

Na campanha de alguns candidatos, como Pablo Marçal em São Paulo, essa crise se manifesta de forma explícita. Marçal busca encarnar falsamente a figura de um “líder antissistema” que se expressa de maneira agressiva e moralmente violenta, buscando capturar a frustração e a raiva acumuladas pela população diante das desigualdades e da insegurança. No campo da psicologia, a expressão dessa frustração por meio da agressividade é uma resposta comum diante de ambientes onde o sentimento de impotência é constante. Em um país onde as oportunidades são desiguais, muitos projetam sua insatisfação em discursos e figuras políticas que canalizam essa indignação contra adversários e instituições, usando uma retórica violenta e excludente.

Esse tipo de discurso se encaixa em um contexto histórico de formação brasileira do pensamento e do comportamento, moldada desde a colonização e a escravidão, onde a desigualdade era – e ainda é – desumana, estruturante e nunca foi realmente questionada. O Brasil nunca passou por processos de reparação histórica como outras nações com passados coloniais, deixando raízes profundas de injustiça que continuam a definir o imaginário social. Sem reparação e reconhecimento de nossa genealogia de dominação étnica, torna-se mais fácil naturalizar a desigualdade como um “estado natural” e permitir que narrativas ultraliberais reduzam o sucesso ao esforço individual, ignorando as condições de partida desiguais. O discurso do “self-made man” é reforçado nesse contexto, onde a prosperidade material é exaltada enquanto o sofrimento e a precariedade dos outros são vistos como falhas pessoais.

A manipulação desse imaginário é amplificada pelos algoritmos, controlados por bilionários donos de monopólios digitais que ditam o que vemos e consumimos nas redes sociais. O conteúdo que mais retém a atenção é também o que mais frequentemente reforça visões polarizadas, sensacionalistas e individualistas. Em vez de promover um espaço de diálogo e reflexão, essas plataformas aumentam as divisões e as narrativas agressivas e que exploram o medo, priorizando a quantidade de cliques e engajamento em detrimento da qualidade e da responsabilidade social. A ausência de um controle estatal sobre esses algoritmos permite que alguns poucos bilionários globais ditem o que é relevante no debate público, nacional, regional ou identitário, fortalecendo as tendências personalistas e fragmentadas que dominam o cenário atual.

No campo político, a falta de controle sobre a disseminação de desinformação e a superficialidade dos conteúdos empurrados pelos algoritmos contribuem para uma perda de identidade coletiva, uma desconexão entre o cidadão e o sistema-povo, e uma visão de democracia cada vez mais esvaziada. Esse ambiente gera um eleitorado apático e desacreditado, onde o envolvimento político é um privilégio distante da realidade de quem está preocupado apenas em sobreviver.

Como agentes políticos e sociais de luta, precisamos reconhecer que a moderação no discurso de setores da esquerda, que muitas vezes assumem uma postura conservadora em busca de votos, não tem dado resultados positivos. É hora de afirmar, com clareza e convicção, que o capitalismo não atende às necessidades da maioria e que precisamos debater sobre socialismo, organização e ações comunitárias e o papel do Estado como garantidor de direitos básicos, como saúde, educação e seguridade social. Precisamos reconectar o público com a importância de políticas públicas e fortalecer a defesa de um modelo de sociedade que priorize o coletivo e os direitos humanos.

Para superar a crise que estamos vivendo, acredito ser necessário adotar um pensamento complexo por nós agentes políticos, como propõe Edgar Morin, para analisar e construir propostas de sociedade que reconheçam as interdependências sociais e históricas. Devemos resistir à sedução do individualismo predatório, personalista e exclusivista, e construir diálogos de uma subjetividade que valorize o “nós” acima do “eu”, permitindo o desenvolvimento de uma democracia realmente participativa e inclusiva. Afinal, sem uma política que compreenda as complexidades humanas e que esteja pautada na justiça social, a democracia se torna um espetáculo vazio, onde o cidadão é apenas um espectador frustrado e cada vez mais distante.

*Danilo Tavares é produtor cultural, documentarista, coordenou diversas oficinas de cinema digital, é gestor e desenvolve propostas de projetos para editais culturais e sociais. Atualmente é proprietário da Zopp Criativa Produções, empresa com selo Estratégias ODS, diretor de projetos do Clube do Choro de Santos, membro do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista e diretor da Casa Crescer e Brilhar (São Vicente). E-mail: [email protected].

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.