Foto: José Marques Carriço

José Marques Carriço*

Para que a população de Santos possa se posicionar adequadamente sobre o projeto de privatização completa da Sabesp, a maior empresa de saneamento do Brasil, é preciso trazer à luz a história da implantação dos serviços públicos de água, esgoto e drenagem, desde seu início, no final do século XIX. Em meio à crise sanitária que abalou a imagem da cidade no plano internacional, a municipalidade procurou incumbir-se do abastecimento domiciliar de água, por meio da concessão municipal à Companhia de Melhoramentos da Cidade de Santos, em 1870. O serviço foi concedido em 1882, à Companhia City of Santos Improvements, de capital estrangeiro, por falta de capacidade técnica e financeira da primeira concessionária. A City foi responsável pelos investimentos que garantiram a ampliação do sistema, captando água em Cubatão, construindo reservatórios e aumentando a rede pública, quando a população de Santos começava a crescer aceleradamente, em função da construção do Porto. Porém, a atuação da empresa gerou fortes reações da população, em 1884, levando ao episódio conhecido do “Quebra-Lampião”, contra o anunciado aumento do preço da água fornecida e a introdução de medidores de consumo.

Na mesma época, a municipalidade procurava conceder a outras empresas o serviço de coleta de esgotos, de execução mais complexa e que acabou sendo encampado pelo estado, em 1896, por falta de capacidade técnica do município. Em 1902, pelo Decreto Estadual nº 1.077, foi criada a Comissão de Saneamento de Santos, com a incumbência dos serviços de construção e conservação da rede de esgotos da cidade e da fiscalização do serviço de abastecimento de água, sob responsabilidade da City.

Em 1905, após anos de impasses técnicos e políticos, a Comissão de Saneamento do Estado, então chefiada pelo engenheiro Francisco Saturnino de Brito, começou a implantar em Santos, aquele que foi um dos mais importantes planos de saneamento da primeira metade do século XX, no Brasil. Além da rede, das estações elevatórias e de pré-tratamento de esgotos, Saturnino implantou em definitivo o sistema de separação entre águas da chuva e esgotos, por meio do sistema de canais, que somente nos anos 70 foi estendida, pelo município, para áreas da cidade ainda não urbanizadas no início daquele século. Desde que foi implantado, o sistema de coleta de esgotos sempre foi de competência estadual, mas a operação do sistema de drenagem passou ao município.

O abastecimento de água de Santos foi encampado pelo estado, em 1953 e, desde então, também passou a ser de competência estadual. Em 1968, pelo Decreto Estadual nº 50.770, foram unificados vários órgãos responsáveis pelos serviços de abastecimento de água e coleta de esgotos na Baixada Santista, na Superintendência de Saneamento da Baixada Santista. No ano seguinte foi criada a empresa estatal estadual Saneamento da Baixada Santista (SBS), que, em 1971, incorporou várias empresas particulares de captação e tratamento de água, uniformizando o atendimento à região. Em 1973, pela Lei Estadual nº 119, foi autorizada a constituição da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), com o objetivo de planejar, executar e operar os serviços públicos de saneamento básico no Estado de São Paulo, implementando as diretrizes estabelecidas no Plano Nacional de Saneamento. Em 1975, a empresa incorporou a SBS, junto com outras cinco empresas de saneamento do estado.

A Sabesp começou a atuar na região em um período crítico, durante a ditadura militar, quando Santos não possuía autonomia administrativa e não havia qualquer possibilidade de participação da sociedade no planejamento e gestão dos serviços de saneamento. Somente na década passada a empresa firmou contratos com os municípios atendidos. Com Santos, o contrato de prestação de serviços de saneamento somente foi assinado em 2015, 41 anos após sua criação.

Na década de 70, o processo de metropolização da Baixada Santista já estava consolidado, com a explosão da urbanização periférica de Santos sobre o território dos municípios vizinhos, com péssimas condições de cobertura e atendimento das redes de saneamento. Em Santos e São Vicente, o adensamento dos bairros da orla, a ampliação das ocupações precárias nos Morros e nos manguezais traziam sérios desafios no campo do saneamento básico na Ilha de São Vicente, que concentrava a maior parte da população regional. Desde então, a contaminação do sistema público de drenagem e a falta de cobertura do sistema de esgotos em assentamentos precários passaram a comprometer a balneabilidade das praias. O resultado foi a fuga do turismo balneário do polo regional para municípios vizinhos, estimulada pelo investimento estatal na ampliação da malha rodoviária.

Ao contrário do início do século XX, quando o Plano de Saturnino deu condições à expansão da urbanização de Santos em direção à orla, a Sabesp assumiu um sistema muito aquém das necessidades do processo de urbanização desigual, decorrente da industrialização da Baixada, com necessidade de muitos investimentos em sua ampliação e manutenção. Ainda assim, foi notável a atuação da empresa, seja na ampliação dos sistemas de tratamento, reservação, adução e distribuição de água, seja na ampliação dos sistemas coleta, tratamento e destinação final dos esgotos. São da década de 70 obras complexas e de alto custo como o Túnel-reservatório de água tratada do Morro do Marapé, o Interceptor Oceânico de esgotos nas praias e o Emissário Submarino, necessário, pois, como as demais cidades do litoral paulista, Santos não possui uma estação de tratamento de ciclo completo.

Mas apesar desses altos investimentos, o déficit de atendimento ainda era marcante em alguns municípios litorâneos e mesmo naqueles, como Santos, notabilizados pelo alto percentual de cobertura das redes, na prática, o sistema de separação das águas servidas das águas pluviais entrou em crise. Os canais de drenagem construídos pelo Plano de Saturnino de Brito e os demais, construídos nos anos 70 pelo próprio município, passaram a ser os principais veiculadores da contaminação das praias e do estuário.

No início dos anos 90, a partir do reconhecimento da grave situação, prefeitura e Sabesp celebraram um acordo, pelo qual a operação das comportas do canal, que foram recuperadas, viabilizou a condução das águas pluviais contaminadas para a Estação de Pré-condicionamento do José Menino, em dias sem chuvas. Este procedimento foi acompanhado de intensa campanha de fiscalização contra o despejo de esgotos na rede de drenagem e, em pouco tempo os índices de balneabilidade apresentaram resultados positivos, que assim se mantiveram até meados da década seguinte.

Com a melhoria na balneabilidade e o alto percentual de cobertura das redes, Santos passou a figurar nos rankings de saneamento, entre os melhores municípios do país. Por exemplo, segundo o ranking do saneamento do Instituto Trata Brasil de 2023, Santos encontra-se em segundo lugar dentre todos os municípios brasileiros, com base em indicadores enganosos, pois há percentual significativo de moradores em favelas no município, sem adequado atendimento pelos sistemas de saneamento básico. E na Área Continental, a despeito de sua população reduzida e esparsa, não há um metro sequer de rede de esgoto conectado a sistema de tratamento. Esses assentamentos irregulares configuram “áreas não atendíveis” no contrato entre o município e Sabesp e, portanto, não são computados no cálculo do atendimento, resultando no falseamento desses rankings de saneamento. São áreas que dependem de recursos das três esferas de Poder para regularização fundiária e urbanística, sobretudo com prioridade política por parte da prefeitura, cuja velocidade no processo de regularização, sobretudo urbanística, é muito aquém da necessária. Portanto, pode-se afirmar que as promessas de universalização que o atual governo do estado faz, para embasar sua proposta de privatização, de acordo com as Diretrizes Nacionais de Saneamento Básico, Lei nº 14.026/2020, não se concretizarão se não houver um compromisso político por parte do município, que é o Poder concedente dos sistemas de saneamento básico. Na prática, a velocidade da prefeitura na regularização dos assentamentos é muito lenta, apesar do intenso e árduo trabalho de sua reduzida equipe. Segundo dados do Sistema de Informações Metropolitanas da Baixada Santista, de 2023, o município teria que regularizar cerca de 21.943 domicílios, em 96 assentamentos precários, para zerar seu déficit de atendimento. Assim, fica claro que a promessa do governo do estado, de alcançar a universalização em 2029, com a desestatização da Sabesp, não será atendida nem ao final da próxima década.

Além desse aspecto, a questão tarifária é um dos pontos centrais na discussão sobre a conveniência da entrega do controle definitivo da Sabesp ao capital privado. Embora a revolta com o aumento das tarifas de água promovido pela City, no final do século XIX, esteja distante da memória da população, não está tão longe no tempo o processo de abertura do capital da empresa na Bolsa de São Paulo, em 1997, quando o governador Mário Covas anunciou o aumento das tarifas em quase 10 %, a partir do dia seguinte ao leilão das ações, depois de a empresa ter cortado cerca de 3 mil postos de trabalho no período que antecedeu o leilão. As consequências desse processo, que resultou na terceirização dos serviços da Sabesp, todos conhecemos bem, pois é visível em nossas ruas a queda da qualidade dos serviços ao longo dos anos.

Em 2002, o capital da Sabesp foi aberto na bolsa de Nova Iorque, tornando o estado de São Paulo detentor de apenas 50,3% das ações (34,4% na de São Paulo e 15,3% na de Nova Iorque). Desde então, o aumento das tarifas sempre superou a inflação medida pelo INPC. Ainda que se argumente que os aportes dos investidores tenham saído de um patamar de R$ 1 bilhão ao ano para R$ 5 bilhões atuais, com o valor de mercado da empresa aumentando em dez vezes, não se deve esquecer o aumento expressivo da emissão de debentures, para remunerar os investidores, sobretudo no início do processo de capitalização da empresa.

No final da década de 2000, o governo estadual realizou operações de crédito e aumentou expressivamente os investimentos, inclusive no litoral, cujo déficit de atendimento era marcante. Mas é importante considerar o papel desempenhado pelo Plano Nacional de Saneamento, de 2007, acompanhado pelo Programa de Aceleração de Investimentos, que direcionou mais de R$ 600 bilhões em obras de saneamento em todo o país, naquele período. Portanto, a melhoria do atendimento no litoral não pode ser atribuída exclusivamente à abertura de capital da Sabesp.

Na verdade, os municípios do litoral têm características específicas que demandam um olhar diferenciado, quando se trata de saneamento. Em função de suas condições geográficas e topográficas, sobretudo a implantação dos sistemas de esgotos demanda altos investimentos. Mesmo os sistemas de abastecimento de água apresentam recorrentes problemas de falta de pressão na rede e baixa capacidade de reservação em alguns municípios, principalmente em períodos de veraneio, onde grande proporção dos domicílios são de uso ocasional e a população residente enfrenta sérios problemas de déficit de atendimento. Em vários municípios litorâneos, grandes investimentos em infraestrutura são direcionados para atender residências, que na maior parte do tempo estão desocupadas, enquanto muitas áreas em que predominam domicílios de uso permanente sofrem com desabastecimento e até ausência de coleta de esgotos. A despeito disso, a nova forma de organização dos municípios atendidos pela empresa, resultante da aprovação, a toque de caixa, da Lei Estadual nº 17.383/2021, reduz o poder de mobilização dos municípios da Baixada Santista.  Para adequação ao novo marco legal do saneamento, de 2020, a lei estadual criou 4 Unidades Regionais de Água e Esgoto (URAEs), ficando a Baixada Santista, com seu contexto territorial e socioeconômico radicalmente distinto dos municípios de outras regiões do estado, inserida na URAE 1 – Sudeste, composta por 370 dos 375 municípios operados pela Sabesp. Esta URAE desrespeitou a Lei Federal nº 13.089/2015, o Estatuto da Metrópole, ao unificar todos os municípios que já possuíam contrato com a empresa em uma mesma organização que não considera a realidade territorial. A URAE 1 resultou na fragmentação de 8 das 9 Regiões Metropolitanas e Aglomerações Urbanas existentes no estado, na divisão de parte de municípios de 18 Unidades de Gestão de Recursos Hídricos e na totalidade dos municípios de 3 dessas unidades, inclusive, deixando alguns municípios “ilhados”, ou seja, cercados por municípios da URAE Sudeste, mas integrando outra URAE. Essa estranha “regionalização” já é um prenúncio dos problemas que Santos e outros municípios do litoral poderão enfrentar no futuro.

Mesmo considerando os grandes investimentos realizados em todo o litoral, pela Sabesp, no início da década passada, houve desaceleração nas obras prometidas nos últimos anos. Como exemplo pode-se citar o reservatório de água bruta da Cava da Pedreira, que resolveria os sérios problemas de abastecimento de água do Guarujá, e a Estação de Tratamento de Esgotos do bairro Caruara, ambos prometidos para a Área Continental de Santos e que até hoje não saíram no papel.

Até em uma cidade consolidada como Santos, observam-se sérios problemas de gestão do saneamento, agravados nos últimos anos. É notório o aumento da contaminação dos canais de drenagem por esgotos, com sensível piora no final da década passada, revelado pelos relatórios de balneabilidade das praias, elaborados anualmente pela Cetesb. Deve-se destacar que o contrato entre o município e Sabesp obriga a empresa a repassar, trimestralmente, 0,53% de sua receita em Santos, para a prefeitura, para aplicações em ações vinculadas aos serviços de saneamento e ao saneamento ambiental (Cláusula 24). Portanto, não se justifica a falta de providências no sentido de fiscalizar e eliminar as fontes de contaminação, que qualquer munícipe percebe ao circular próximo aos canais, que são os cartões postais da cidade.

Também é bem conhecida da população santista a lentidão da Sabesp na substituição de coletores de esgotos obsoletos, revelada pelos vários acidentes com abatimento de solo, que resultam em longas interdições de vias públicas. Todavia são recorrentes problemas de falta de pressão de água nos morros e na Zona Noroeste, assim como de extravasamento de esgotos em vários pontos da área insular. É difícil crer que problemas como esses e o mencionado passivo das comunidades não atendidas pelos sistemas públicos de saneamento serão resolvidos como por passe de mágica pela pretendida desestatização da Sabesp. Na verdade, são todos problemas decorrentes de falhas de gestão do saneamento por parte do Poder concedente, o município, que dispõe dos meios legais e contratuais para fazer com que Sabesp e agências reguladoras cumpram seu papel, garantindo um saneamento de excelente nível, como seria de se esperar por uma cidade que já foi vanguarda no setor. Portanto, a correção dessas falhas está na ponta dos dedos dos eleitores que vão às urnas escolher o novo ou nova prefeita, em outubro próximo.

*José Marques Carriço é arquiteto, urbanista e pesquisador do Núcleo da Baixada Santista do Observatório das Metrópoles, que desenvolve o projeto Observatório das Metrópoles nas Eleições: um outro futuro é possível.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.