Por Sônia Regina Nozabielli*
Não há dúvida de que este mundo é desigual e o chão das cidades expressam desigualdades. Mas, a simples pergunta do que seja “desigualdade” provoca diferentes explicações que vão desde a naturalização e aceitação da sua existência ao seu repúdio e defesa de outras condições de vida para todas as pessoas.
Recentemente, as tirinhas de Fabiane Langon, publicadas na Folha de São Paulo, versaram sobre algumas palavras que vêm perdendo o sentido pelo uso controverso ou exagerado. Inspirada nessas tirinhas e analisando o cotidiano das cidades, a desigualdade é uma dessas palavras ameaçadas de extirpação e deturpação do seu significado.
A palavra desigualdade é formada pelo prefixo “des” que se junta a palavra “igualdade”, que tem ampla tradição de estudos ao longo da história da civilização. Palavra que carrega opostos interdependentes (igualdade e desigualdade), da ordem das contradições geradas pelo modo como a sociedade é organizada. Contradições que aparecem em um determinado momento, se integram dentro de um processo e podem ser reversíveis a depender dos deslocamentos e mudanças produzidas pela ação política e coletiva de homens e mulheres no curso da história. A palavra desigualdade, portanto, tem relação direta com a ideia de igualdade que uma sociedade é capaz de produzir e defender. É uma palavra que contém ou pode conter um sentido crítico e questionador das injustiças sociais, da dominação política e econômica, das opressões, das violências, da segregação no espaço urbano.
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Ocupa a primeira posição no ranking de concentração de renda e riquezas (Relatório Global Wealth Report 2023). Quase metade da riqueza do país (48,4%) está nas mãos de apenas 1% da população. Depois do Brasil, estão no topo dessa lista: Índia (41%); Estados Unidos (34,3%); China (31,1%); e Alemanha (30%).
Em agosto de 2023, o Observatório Brasileiro das Desigualdades publicou o relatório “Um retrato das desigualdades no Brasil hoje”. Um documento que traz 42 indicadores, organizados em 8 temas (educação; saúde; renda, riqueza e trabalho; clima e meio ambiente; desigualdades urbanas e acessos a serviços básicos; representação política e no poder judiciário; segurança pública; e segurança alimentar) e considera as desigualdades territoriais, de gênero e de raça que têm reproduzido desigualdades ao longo de gerações.
Dentre outros aspectos, o relatório informa que a distância entre ricos e pobres é gigantesca. Os 10% mais ricos obtinham, em 2022, um rendimento médio mensal per capita 14,4 vezes maior do que os 40% mais pobres. Cerca de 7,6 milhões de pessoas viviam com uma renda per capita mensal menor do que R$ 150,00 e, os que menos ganhavam, eram os que pagavam mais impostos: os 10% mais pobres pagam 26,4% da sua renda em tributos, enquanto os 10% mais ricos apenas 19,2%. Também destaca que negras/os e mulheres são os grupos menos representados nas instâncias de tomada de decisão e os mais afetados por todas as dimensões de desigualdade; que a falta de condições de dignidade afeta os mais pobres desde o seu nascimento; que parte expressiva da população ainda mora em áreas precárias ou de risco e apresenta maior risco de morte por conta da ausência de serviços adequados de saúde; e que a desigualdade entre regiões, estados e municípios é marcante.
Tudo isso permite dizer que a desigualdade não é um fenômeno natural, não é sinônimo de diferença, não decorre do fracasso individual de muitas pessoas e do sucesso de poucas, não pode ser enfrentada isoladamente e responsabilizada individualmente, não se explica por um fundo moral, da maldade humana. A desigualdade é produzida pela sociedade e se expressa de modo diverso no chão urbano.
Morar em palafitas, cortiços, favelas, comunidades urbanas; viver onde não tem esgoto sanitário; não ocupar posição de comando no trabalho por ser preta/o, por ser mulher; ter baixa renda ou nenhuma renda; morar longe do trabalho e perder tempo em deslocamentos; ser despejado por não ter renda para pagar o aluguel; ser definida/o como população em situação de rua; não ter uma alimentação adequada; estar exposta/o a riscos ambientais e substâncias contaminantes; sofrer discriminação, preconceito e violência por ser preta/o, mulher, LGBTQIA+, indígena, pessoa com deficiência, pessoa idosa; não ter trabalho e proteção social; dentre outras tantas situações, são marcas das desigualdades entre as pessoas, criam hierarquias e segregações, que se reportam a algum aspecto ou direito negado no espaço urbano.
Como afirmou o renomado geógrafo britânico David Harvey, em 2015 quando esteve no Brasil, “a desigualdade é motor de segregação urbana”. Isto faz refletir o modo como a desigualdade, em suas variadas dimensões, alimenta os mecanismos de segregação urbana e é alimentada por essa lógica. Assim, a segregação urbana é resultado das desigualdades e ao mesmo tempo produz, perpetua e agrava as desigualdades no chão das cidades, criando barreiras e hierarquias no uso do espaço urbano.
A segregação marca de forma diversa a qualidade de vida, o sentido de pertencimento e de direito à cidade nas diferentes pessoas que habitam o espaço urbano. Um dos mais importantes pensadores do urbanismo no Brasil, Flavio Villaça, afirmou em texto de 2011 (“São Paulo: segregação urbana e desigualdade”), que a segregação é a manifestação espacial urbana da desigualdade que demonstra o desnível que existe entre o espaço urbano das/os mais ricos e o das/os mais pobres. A segregação das residências das/os mais ricos (e, por oposição, a das/os mais pobres), a segregação dos seus locais de trabalho e do tempo/espaço de deslocamentos, a segregação no acesso a serviços, à cultura, ao lazer, à vida política, criam um ônus para as/os mais pobres e vantagens para as/os mais ricos.
A saudosa professora da PUC-SP, Dirce Koga (2003), sintetizou essa dinâmica ao falar de territórios marcados pelas desigualdades e estigmas que dividem a cidade entre pobres e ricos, feios e bonitos, cultos e incultos, bregas e chiques. E incluiria, do morro e do asfalto. O que significa considerar os vínculos que articulam o espaço urbano segregado, com a economia, a política e a ideologia, por meio das quais opera a dominação.
Santos, cidade polo da Região Metropolitana da Baixada Santista, pavimenta o desenvolvimento econômico e perpetua as desigualdades. As medidas da cidade são no superlativo, conforme demonstram alguns destaques de paradoxos no chão urbano: tem o maior complexo portuário e a maior favela de palafitas da América Latina; tem a maior quantidade de apartamentos como moradia predominante do Brasil; está entre as cinco melhores cidades para se morar no Brasil em qualidade de vida, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH); é a 10ª mais competitiva e ocupa a 1º posição geral na área de saneamento, do Ranking de Competitividade dos Municípios; tem os mais altos índices de mortalidade infantil e materna do estado de São Paulo.
As cidades são espaços da desigualdade, da segregação, mas, também, da disputa pelo direito de viver nelas, com mais dignidade, igualdade e justiça. O que enseja considerar o contexto das eleições municipais que se aproximam e a pergunta: um outro futuro é possível nas cidades da Baixada Santista? Nossas cidades, como parte da lógica de cidades globais voltadas para o capital, estão segregando, expulsando, matando, silenciando, controlando, adoecendo as pessoas que nela vivem. É preciso pensar a cidade como espaço de proteção social.
Tomar a desigualdade como tema significa adentrar a agenda política de candidatas/os as Prefeituras e as Câmaras de Vereadores, compor os planos de governo, pensar respostas aos problemas urbanos, de modo a melhorar as condições de vida e de trabalho das/os mais pobres, que sentem mais diretamente no seu cotidiano e na sua história, os impactos das desigualdades econômica, social e política. Que a desigualdade produzida e reproduzida no chão urbano dessa região metropolitana vire tema central nas eleições municipais, com debates públicos, democráticos e abertos à participação social. Que a desigualdade possa ser denunciada, descrita, medida, explicada e enfrentada pela via da cidadania em construção desde 1988, pelo conjunto das políticas sociais e das intervenções públicas na vida urbana. Que a vida das pessoas importe e se firme a perspectiva do direito à cidade, como direito humano e coletivo para o tempo presente e para o futuro.
*Sônia Regina Nozabielli é doutora em Serviço Social, docente do curso de Serviço Social na Universidade Federal de São Paulo, pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Baixada Santista, que desenvolve o projeto Observatório das Metrópoles nas Eleições: um outro futuro é possível.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.