Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A prefeitura de Santos, por meio da Secretaria Municipal de Educação (Seduc), anunciou que pretende terceirizar o atendimento a crianças com algum tipo de deficiência. O edital para a seleção de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) foi publicado no Diário Oficial desta segunda-feira (30).

A medida desagradou educadores e professores da rede municipal, que, inclusive, estão se articulando com o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Santos (Sindserv) para tentar reverter a decisão.

Há, inclusive, um abaixo-assinado, elaborado por uma mãe de aluno, que deverá ser entregue ao prefeito Paulo Alexandre Barbosa (PSDB), com o objetivo de evitar que a terceirização seja oficializada pela administração municipal.

“É uma medida péssima, sob qualquer ponto de vista”, resume Elaine Vidal, que se dedica à Educação há 24 anos e, atualmente, é professora universitária do curso de Pedagogia e atua na formação de professores, assessorando redes públicas e privadas de ensino.

Ela detalha o que significa o decreto: “As crianças com necessidades educacionais especiais (autistas, por exemplo) têm o direito, por lei federal, de frequentar a escola regular. Como o modelo tradicional de escola não atende às necessidades dessas crianças, o poder público é obrigado a fazer adequações para que essas necessidades sejam atendidas”, explica.

No caso de um aluno cadeirante, por exemplo, é obrigação da escola adaptar suas instalações físicas para que o espaço escolar seja acessível. No caso de uma criança com deficiência visual, é obrigatório ser oferecido material adequado, com ampliação de fontes ou mesmo braile.

Quando se trata de um autista ou um aluno com deficiência intelectual, a criança tem direito ao chamado Atendimento Educacional Especializado (AEE), que é o serviço oferecido por um professor formado, no período contrário ao que a criança estuda regularmente, com um programa de estudos desenvolvido especialmente para ela (um complemento à educação regular).

Trechos do edital da Seduc – Fotos: Reprodução

O mediador

“Neste caso, é imprescindível a atuação do mediador, que é aquele professor que estará com a criança durante a aula regular, auxiliando-a nas situações de convivência com os demais e adequando, especialmente para ela, os conteúdos passados pelos professores titulares da sala. Como é muito importante que o mediador seja um professor, essa função vinha sendo desempenhada, até então, pelos próprios professores da rede municipal, concursados, que atuavam como mediadores no período contrário ao de sua atuação”, destaca Elaine.

Dessa forma, o professor, que geralmente é mal remunerado, conseguia ampliar sua carga horária e, por consequência, seu salário. A prefeitura, por sua vez, garantia, de certa forma, um atendimento profissional a esses alunos.

“Agora, com o decreto, essa função de mediador passa para as OSCs.  É um duro golpe para os professores que contavam com essa complementação salarial, logo após um ano em que eles já tiveram uma redução de 50% no salário correspondente a essa função, em virtude do ensino remoto, ainda que tenham permanecido no atendimento online desses alunos”, ressalta Elaine.

A educadora Elaine Vidal – Foto: Arquivo Pessoal

População também perde

Ela avalia que a população também perde com essa medida, pois o requisito mínimo para ser mediador, segundo o decreto, é possuir o Ensino Médio. Ou seja, qualquer pessoa, com pelo menos 18 anos, que tenha concluído o Ensino Médio, sem nunca ter atuado ou ouvido falar dessa função, em tese, poderia se candidatar.

“Admitir essa possibilidade é afirmar que as crianças com necessidades especiais não precisam ser educadas, mas apenas cuidadas. É dizer que, para atendê-las, não é preciso um profissional durante a aula regular, bastaria o professor titular (que precisa dar conta da turma toda) e o professor de AEE (que atua de forma complementar, no contraturno)”, diz.

Ela prossegue: “É abrir mão da inclusão em sua essência, como se não fosse necessário, no momento em que a criança está na sala, que um professor atenda às suas necessidades, pois bastaria que ela estivesse no ambiente, sendo cuidada por alguém sem formação, e isso seria considerado inclusão. É um desrespeito às crianças, com suas famílias e também com os professores”, critica a educadora.

Na avaliação de Elaine a atuação das OSCs, no geral e especificamente no setor da Educação, é muito ruim.

“A Constituição diz que é dever do Estado e da família garantir educação a todos. Quando pensamos em educação, pensamos na qualidade. Não há como garantir qualidade em uma OSC. Pelo contrário, como o serviço é terceirizado, fica fácil para o poder público eximir-se quando ocorre qualquer problema. Terceirizar a educação é terceirizar o futuro de uma cidade”, afirma.

Sem transparência

“Atualmente, Santos tem muitas creches conveniadas, ou seja, parte de nossa Educação Infantil está na mão de OSCs. Algumas são excelentes, mas como professora de graduação ouço muitas denúncias de negligência para com as crianças. Não são instituições públicas e a população não sabe o que ocorre lá dentro. Não há transparência, não há fiscalização adequada, não há garantia de qualidade”, analisa Elaine.

Para ela, o dinheiro que se gasta com OSCs seria melhor investido se fosse aplicado em construção de escolas municipais e formação continuada dos educadores. Aliás, sobre essa questão, ela discorda da narrativa comum ao poder público.

“Embora o discurso divulgado seja de que há uma economia na contratação das OSCs, o valor milionário de muitos contratos deixa dúvidas sobre isso”, completa a educadora, que também é formada em Letras e Pedagogia, com mestrado em Linguagem e Educação, e doutoranda em Psicologia e Educação, já tendo atuado como professora em todos os níveis da Educação Básica.

Posicionamento da Seduc

O Folha Santista solicitou um posicionamento da Seduc. Em nota, a secretaria se manifestou da seguinte maneira:

“A Seduc informa que nenhum direito dos alunos será violado e os professores não serão prejudicados. Pelo contrário, a mudança na dinâmica desse serviço só trará benefícios:

1)O trabalho vai ganhar acompanhamento por equipe multiprofissional altamente especializada e com experiência: o coordenador, o supervisor técnico e o técnico de enfermagem.

O coordenador e o supervisor técnico terão que ter curso superior em Psicologia, Terapia Ocupacional ou Pedagogia, com pós-graduação em Psicopedagogia, e o técnico em Enfermagem, registro no órgão competente.

Continua a ser responsável pela classe o professor regente, com orientação do professor do Atendimento Educacional Especializado (AEE), que tem formação em educação especial, e se constatada a necessidade do aluno, por laudo médico, o terceiro profissional atuando, o Profissional de Apoio Escolar Inclusivo (PAEI).

2)Mais rapidez no atendimento: o tempo para providenciar o PAEI quando atestada a necessidade, será reduzido, uma vez que não será necessário abrir inscrição para a procura de profissionais disponíveis na rede municipal, otimizando o acesso a serviços especializados de educação e melhorando a qualidade de vida dos alunos e suas famílias.

3)Quanto aos professores que participavam no projeto como mediadores de inclusão, podem optar por outros projetos da Seduc, acompanhando a divulgação de inscrição de projetos no Diário Oficial”.

Objetivo

Questionada sobre o objetivo da medida, a Seduc respondeu: “Para assegurar o apoio escolar inclusivo aos alunos com deficiência e/ou Transtorno do Espectro Autista (TEA) faz-se necessário um conjunto de ações e serviços, desempenhado de forma integrada por diferentes sujeitos. Para tanto, a secretaria abriu Edital de Chamamento Público 01/2020, a fim de reduzir o tempo de espera pelo atendimento, caso seja constatado a necessidade, otimizar o acesso a serviços especializados de educação e melhorar a qualidade de vida dos alunos e suas famílias”.

Valores

Em relação à comparação sobre o que era pago aos professores da rede e o que será desembolsado para as OSCs, a Seduc disse:

“Até este ano o valor mensal investido pela prefeitura com o projeto de mediação de inclusão era de R$ 2 milhões. De acordo com o Edital de Chamamento 01/2020, o valor anual será de R$ 9.400.000,00”.

Ensino Médio

Sobre abrir abrir mão de um professor e contratar uma pessoa apenas com formação no Ensino Médio, a Secretaria se posicionou: “A Seduc afirma que houve a necessidade de mudar a dinâmica do serviço oferecido. Explica que o trabalho pedagógico em sala de aula continuará sendo de responsabilidade do professor regente de classe, juntamente com a orientação do professor do Atendimento Educacional Especializado (AEE), com formação em educação especial. O profissional de apoio escolar inclusivo (PAEI) será um terceiro profissional em sala, conforme necessidade do aluno, constatada por laudo médico.

Vale destacar que a Organização da Sociedade Civil (OSC) que passar pelos trâmites legais necessários, cumprindo o estabelecido no Edital, terá que disponibilizar profissionais especializados para acompanhar o trabalho, todos com formação específica – o coordenador, o supervisor técnico e o técnico de enfermagem.

O coordenador e o supervisor técnico terão que ter curso superior em Psicologia, Terapia Ocupacional ou Pedagogia, com pós-graduação em Psicopedagogia. Já o técnico em Enfermagem, registro no órgão competente.  

Eles darão suporte multidisciplinar à função do profissional de apoio escolar inclusivo (PAEI). Importante ressaltar que o projeto apresentado pela OSC terá que estar de acordo com a Política de Educação Inclusiva da Seduc. Além disso, a entidade precisará comprovar experiência na área.  

O PAEI, que deverá ter no mínimo o Ensino Médio, atuará como facilitador nas questões sociais e de comportamento, na comunicação e linguagem, nas atividades e/ou brincadeiras escolares e nas atividades dirigidas e/ou pedagógicas, bem como em relação à higiene, à mastigação de alimentos, à ingestão de líquidos e ao bem-estar geral do aluno, dentre outras ações  e adequações propostas pelos professores regentes e professor do AEE, sempre com suporte dos demais profissionais disponibilizados pelas OSCs”.