Por Leonardo Moretti Manço e Daniel Arias Vazquez*
Nesse artigo, abordaremos a localização das unidades habitacionais do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) contratadas entre 2009 e 2020, diante da dinâmica urbana e da localização do déficit habitacional na Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS). Nosso objetivo é compreender como a inserção desses imóveis ocorreu no tecido urbano e qual foi a relação entre a oferta do programa e demanda de moradia, tendo como base o déficit habitacional identificado no espaço urbano metropolitano.
O referencial de análise serão os vetores de expansão demográfica, a configuração socioeconômica da região, o déficit habitacional e a divisão territorial proposta pelo Instituto Pólis (2014) para a RMBS. Para atualizar os dados até 2020, quando o PMCMV foi substituído pelo Programa Casa Verde e Amarela (PCVA), utilizou-se as informações do SISHAB, do Ministério do Desenvolvimento Regional – MDR (hoje, Ministério das Cidades), referentes às contratações de moradias do PMCMV nos municípios da RMBS.
A oferta de moradias do PMCMV se concentrou nos municípios/ regiões com maiores déficits habitacionais? O programa consegue integrar sua produção habitacional no polo metropolitano ou reforça as tendências de periferização? Estas são as questões que nortearam a realização deste trabalho. A primeira parte trata da divisão territorial da RMBS, segundo a metodologia definida pelo Instituto Pólis (2014), e a segunda parte analisa a produção habitacional do PMCMV na RMBS entre 2009 e 2020 no território metropolitano (polo e periferias), considerando o volume e os diferentes tipos de déficit habitacional na região. Os resultados são discutidos nas considerações finais.
As definições de polo e periferias na Baixada Santista
O Instituto Pólis observa o espaço urbano da RMBS a partir da concentração de empregos, riqueza e de população. Nessa perspectiva, divide a região em três categorias de município: Centro do Polo, formado pelos municípios de Santos, Guarujá e Cubatão; Periferia do Polo, formada pelos municípios de São Vicente e Praia Grande; e Periferia da RMBS, formada por Bertioga, ao norte, e, Itanhaém, Mongaguá e Peruíbe, ao sul.
A caracterização da região, apesar de estar atrelada ao processo de ocupação territorial, é ligeiramente diferente das divisões mais frequentes, principalmente, por considerar que as características socioeconômicas dos municípios de São Vicente e Praia Grande estão relacionadas a cidades periféricas ao centro do polo, especialmente no caso de São Vicente, tratada normalmente como núcleo principal da região. Essa categorização, a nosso ver, permite observar melhor a inserção das unidades habitacionais do PMCMV no tecido urbano da RMBS.
Dessa maneira, para o Pólis, o Centro do Polo concentra os empregos e a riqueza da região, o município de Santos tem seu desenvolvimento marcado pela estrutura portuária e como principal centro de comércio e de serviços da região. Guarujá, além de dividir parte da estrutura portuária com Santos, tem como destaque a atividade de turismo.
O perfil econômico de Cubatão está associado às grandes empresas ligadas ao polo petroquímico, assim, oferece uma quantidade de empregos na área industrial. Vale destacar que apesar de Cubatão ser um município “rico”, em termos econômicos, não é considerado um município atrativo para moradia, principalmente, para as rendas maiores devido à concorrência com os outros municípios que possuem o lazer da orla da praia e uma urbanização com maior número de serviços. Mesmo assim, optamos por manter a metodologia do Pólis por considerarmos que além da atratividade econômica seria interessante que houvesse um maior adensamento na região urbana do Polo.
São Vicente e Praia Grande, Periferia do Polo, se caracterizam como cidades-dormitório devido ao intenso movimento pendular em direção ao Polo principal. Praia Grande também se caracteriza pelas atividades turísticas e, nas últimas duas décadas, como apontado por Vazquez (2011) e Farias (2019), recebe o deslocamento de parte da população de Santos que sofre com a especulação imobiliária. Esses municípios, juntos a Santos, Cubatão e Guarujá, integram o eixo principal da dinâmica metropolitana da Baixada Santista.
A Periferia da RMBS – Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe e Bertioga – possui uma menor atividade econômica, altos índices de desocupação e informalidade. A principal atividade econômica desses municípios está atrelada ao turismo de veraneio e, como já observado por Farias (2019), esses municípios não possuem uma relação direta com a dinâmica metropolitana da região.
PMCMV na RMBS de 2009 a 2020: a produção de moradias (oferta) versus déficit habitacional (demanda)
O Instituto Pólis, em 2014, publicou um relatório sobre o PMCMV na RMBS com os dados dos primeiros anos do programa (2009-2012), o objetivo do Pólis era analisar a inserção territorial do programa a partir da dinâmica metropolitana e intraurbana. Nosso objetivo é, a partir das principais conclusões do Pólis, dar continuidade à análise do programa no território. Para tanto, atualizamos as informações sobre a contratação de moradias pelo PMCMV até 2020, quando o mesmo foi descontinuado, a partir dos dados disponibilizados pelo SISHAB/ MDR.
Nessa perspectiva, analisaremos os dados do PMCMV e do déficit habitacional, a partir da divisão territorial proposta pelo Pólis, a fim de demonstrar a relação da inserção das unidades habitacionais (UHs) contratadas pelo programa com a dinâmica urbana regional. Para tanto, optou-se pela análise comparada entre a participação percentual de cada município tanto em relação ao déficit habitacional regional, baseado nos dados censitários de 2010, como em relação às contratações do PMCMV. Essa participação percentual está detalhada por faixa de renda em salários-mínimos (SM), separada em dois grupos – de 0 a 3 SM e maior que 3 SM – e por faixa de atendimento do programa: Faixa 1 (popular) e Faixa 2 e 3 somadas (mercado).
Cerca de 30% das moradias estão na Faixa 1 do programa. Nos primeiros 4 anos do programa (2009 a 2012), essa faixa representava mais de 50% das contratações (POLIS, 2014). Os municípios com maiores contratações foram Praia Grande (31,6%), Itanhaém (20,7%) e São Vicente (18,2%), os demais municípios responderam por um percentual entre 7,4% (em Bertioga) e 1,3% (em Cubatão), sendo que o município polo (Santos) foi o destino de apenas 4,8% do total de moradias contratadas pelo PMCMV na RMBS, durante o período analisado.
Essa distribuição percentual é compatível com os dados de déficit habitacional em cada município ou a produção habitacional do programa seguiu a lógica centrífuga do mercado, que empurra a moradia popular para as periferias metropolitanas, diante das possibilidades de menores custos de construção, reforçando a segregação em detrimento do melhor aproveitamento da infraestrutura urbana já disponível e da redução do movimento pendular que implica piora da mobilidade urbana e da qualidade de vida, especialmente das populações mais vulneráveis?
Para contribuir com essa discussão, foram construídas três tabelas com o seguinte formato: 1) total do déficit habitacional e total das contratações do PMCMV, sem desagregação por faixa de renda; 2) total do déficit de 0 a 3 SM e total das contratações Faixa 1; 3) total do déficit > 3 SM e total das contratações Faixas 2 e 3. Com esse exercício, busca-se uma comparação entre os tipos de déficit habitacional (demanda) e as contratações de moradias pelas diferentes faixas de atendimento do programa na RMBS (polo e periferias).
De acordo com a Tabela 02, observa-se que o déficit habitacional nos municípios centrais – Santos, Guarujá e Cubatão – respondem por mais de 50% da falta de moradia na região, sendo que a maior parte é relativa a famílias com renda até 3 SM. Além da ocupação desordenada, esses números no cotidiano da Baixada Santista significam a morada em cortiços, palafitas, em encostas de morros e em reservas ambientais (BRANDÃO, MORELL e SANTOS, 2015; VAZQUEZ, 2011). Do outro lado, a inserção do PMCMV na RMBS se deu principalmente na Periferia do Polo (49,8%) e na Periferia da RMBS (38,7%), por último, no Centro do Polo (11,5%). Ou seja, nota-se um descolamento entre a demanda e a oferta de moradias no programa. Resta saber, se esse mesmo cenário se repete quando desagregamos a análise por faixa de renda.
Na tabela 3, considerou-se apenas o déficit habitacional de famílias até 3 SM. A concentração deste tipo não teve variação em relação ao déficit total e variou somente 1 p.p. nas duas periferias, sem grandes alterações também no nível municipal. Em contrapartida, a distribuição da contratação de moradias na Faixa 1 do PMCMV, variou significativamente: 49,9% ocorreu na Periferia Metropolitana; 43,6% na Periferia do Polo e apenas 6,5% no Centro do Polo. Os números da Faixa 1, portanto, evidenciam a dificuldade maior do programa em atender a demanda por moradia, medida pelo déficit habitacional, e de inserir as classes populares nos espaços urbanos mais qualificados e melhores localizados. Por outro lado, a inserção da classe popular (Faixa 1) nas franjas da RMBS, obviamente, reforça os vetores urbanos (Negreiros, 1992) e a segregação socioespacial (Jakob, 2011).
Vale destacar a participação do município de São Vicente em relação a Faixa 1, somente ele, contém 33% do total dessas unidades (3.120 UHs), tal fato é explicado por dois fatores: o primeiro é a sua área continental afastada a 11Km do centro da cidade que não desperta o interesse do setor imobiliário, o que já era apontado no relatório do Instituto Polis (2014) e que, por esse motivo, é área de expansão de moradia das classes populares há muitos anos (Negreiros, 1992); segundo, há uma confluência de interesses das prefeituras de Santos e São Vicente em uma das áreas de ZEIS do município de São Vicente que levou a construção de um empreendimento de mais de 2 mil unidades habitacionais, denominado Conjunto Tancredo Neves, que serão divididas para o atendimento dos cadastros municipais de São Vicente e Santos. A convergência entre os municípios ocorreu pelo fato de o terreno, apesar de estar localizado em São Vicente, pertencer à Companhia de Habitação da Baixada Santista, órgão que faz parte da administração indireta do Município de Santos.
Ainda em relação a esse empreendimento, é importante considerar que ele acarretará o deslocamento de mais de 1 mil famílias que residem em Santos (Centro do Polo) e que passarão a morar em São Vicente (Periferia do Polo), pois metade desse empreendimento, que será direcionado aos moradores de Santos, poderia ser construído na própria cidade e não na sua vizinha.
Por fim, no que se refere às faixas de maior renda, como era de se esperar, há uma melhor inserção em relação à dinâmica urbana e em relação ao déficit habitacional. No Centro do Polo, a inserção foi mais que o dobro da Faixa 1, chegando a 13,6% das unidades. Na Periferia do Polo, foram inseridas 52,5% das UHs das Faixas 2 e 3, ante 43,6% da Faixa 1, e, na Periferia da RMBS, foram 33,9% contra 49,9%. Obviamente, que uma melhor inserção em relação à dinâmica urbana representou maior aderência à demanda por moradia, uma vez que o déficit também pouco variou quando consideramos apenas o recorte de famílias com mais de 3 SM.
Ainda assim, mesmo com essa relativa melhora, há ainda uma enorme brecha entre a concentração do déficit habitacional no polo metropolitano e a capacidade de produção de moradias populares, mesmo considerando as possibilidades nas faixas 2 e 3 do PMCMV. Nesse sentido, essa dificuldade de inserção no Centro do Polo consolida o apontamento do Instituto Polis (2014) em relação às unidades construídas na Periferia do Polo. Na prática, tal fato evidencia o fato de famílias de renda média não conseguirem se fixar em Santos e migram principalmente para Praia Grande, que foi o principal nicho de atendimento do PMCMV na RMBS, ou seja, uma distorção significativa em relação aos objetivos iniciais do programa.
Em suma, considerando a relação do total do déficit habitacional e o total das contratações, fica evidente como a inserção do programa esteve alinhada aos vetores “naturais” da expansão urbana e não com as demandas sociais do território. Além disso, quando comparamos a inserção urbana das diferentes faixas, fica evidente, como em outras metrópoles (Cardoso e Aragão, 2013; Balbim, Krause e Lima Neto, 2015), que a localização dos empreendimentos da faixa mais popular ficam ainda mais distanciados do polo regional, onde se concentram os empregos e serviços, bem como são menos aderentes às necessidades indicadas pelo déficit habitacional.
Considerações finais
Resumidamente, os resultados obtidos permitem as seguintes conclusões: 1) a localização dos empreendimentos do PMCMV em relação à localização do déficit habitacional evidenciou que não há uma relação direta entre a demanda e a oferta de moradia na RMBS; 2) foi possível identificar que a localização das unidades Faixas 2 e 3 tiveram melhor aderência em relação à localização do déficit se comparada a Faixa 1, o que confirma que o programa foi mais condicionado por regras mercadológicas do solo urbano e que o PMCMV reforçou o processo de aumento da mancha urbana e da segregação socioespacial; 3) o desempenho do programa na RMBS mostra que a Periferia do Polo, composta pelos municípios de Praia Grande e São Vicente, é o principal destino das três faixas de atendimento (49,8%), o que indica que o PMCMV se tornou um alicerce importante na oferta de moradias nas cidades dormitórios que estão diretamente relacionadas à dinâmica metropolitana da Baixada Santista.
No comparativo com o Instituto Polis (2014), de maneira geral, os dados vão na mesma direção apontada nos primeiros anos do programa, entretanto, novas tendências foram observadas, principalmente, a reversão da produção da Faixa 1 e a maior dificuldade de inserção das faixas de maior renda nas localizações mais centrais.
Essa menor capacidade de inserção nas melhores áreas da região pode indicar uma das consequências do programa em sua política de expansão do crédito habitacional sem a devida regulação e controle no uso e ocupação do solo (Bonduki, 2008; Rilink e Nakano, 2009), Na Baixada Santista, isso implica que famílias com renda entre 4 mil e 9 mil reais (teto das Faixas 2 e 3, no ano de 2020), cada vez menos, conseguem se fixar no polo da região, principalmente, no município de Santos (Vazquez, 2011; Farias, 2019).
Para reverter essa tendência, há possibilidades políticas que os governos municipais disponham como uma maior reserva de áreas para empreendimento populares via demarcação de ZEIS e/ou a disponibilização de terra mais barata em zonas mais centrais por meio do combate à especulação imobiliária, com a aplicação do IPTU progressivo no tempo, por exemplo. Sem política urbana, cuja execução cabe às prefeituras em consonância com o Estatuto das Cidades, as contratações de moradias pelo PMCMV se concentraram nas faixas mais rentáveis e onde o custo do solo é menor. Considerando que essas faixas maiores do PMCMV compreendiam famílias com renda de até 8,6 SM no ano de 2020, o processo de periferização na RMBS atinge também a classe média.
Em suma, em termos locacionais, provisão de moradias vs déficit habitacional, a inserção foi pautada mais pelos interesses do capital em detrimento das demandas sociais por moradias nos respectivos territórios. O resultado foi uma provisão habitacional que reforça a periferização e a segregação na RMBS, elevando os custos ambientais da urbanização, devido à ampliação da mancha urbana, e os custos indiretos de qualificar urbanisticamente essas áreas distantes e muitas vezes pouco adensadas.
Referências bibliográficas
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*Leonardo Moretti Manço e Daniel Arias Vazquez são pesquisadores do Núcleo da Baixada Santista do Observatório das Metrópoles.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.