Ângela Mendes traz em seu DNA a vocação para a luta em defesa dos povos da floresta e comunidades extrativistas da Amazônia. Filha do lendário ativista ambiental, Chico Mendes, assassinado em 22 de dezembro de 1988, em Xapuri, no Acre, ela está em Santos, nesta sexta-feira (13).
Coordenadora do Comitê Chico Mendes, ativista ambiental e ex-diretora do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Ângela participa de um evento na Estação da Cidadania. Serão realizadas reuniões para discutir o processo de implantação do Observatório de Apoio e Defesa de Direitos da População Indígena da Baixada Santista e do Núcleo Regional Economia de Francisco.
Além disso, às 19 horas, haverá o lançamento de dois livros e, ao final, uma roda de conversa com a participação de Ângela.
Em entrevista exclusiva para o Folha Santista, ela denuncia a falta de políticas públicas do governo atual em relação aos povos tradicionais e comunidades da floresta e extrativistas.
“O que a gente tem visto é uma série de mecanismos, decretos e projetos de lei que vêm no sentido de desconstruir tudo aquilo que a gente achou que já tinha conquistado, como direito ao território, ao acesso à saúde, educação. Tudo isso a gente não tem mais”, avalia.
Folha Santista: Como analisa a situação atual do país em relação a políticas públicas para os povos da floresta e comunidades extrativistas?
Ângela Mendes: Não há nenhuma política pública ou proposta por parte do atual governo. Ao contrário, o que a gente tem visto é uma série de mecanismos, decretos e projetos de lei que vêm no sentido de desconstruir tudo aquilo que a gente achou que já tinha conquistado, como direito ao território, ao acesso à saúde, educação. Tudo isso a gente não tem mais. O próprio CNS (Conselho Nacional das Populações Extrativistas) vinha, através do seu movimento, o “Chamado da Floresta”, construindo uma agenda com o governo, sobre saneamento básico nas reservas extrativistas, criando o Planafe (Programa Nacional de Fortalecimento das Comunidades Extrativistas e Ribeirinhas). Então, de todo o diálogo, de toda a agenda que a gente vinha construindo, tudo isso foi para o ralo. Não evoluímos e a luta hoje é para manter o que a gente conquistou até agora. É um cenário muito difícil para os moradores das reservas extrativistas.
Folha Santista: Hoje, qual é o principal risco da Reserva Extrativista Chico Mendes?
Ângela: Hoje, a Resex (Reserva Extrativista Chico Mendes) sofre diretamente com a ameaça do Projeto de Lei (PL) 6024/2019, de autoria da deputada Mara Rocha (PSDB-AC), que propõe a redução da reserva, que está completando 30 anos. Então, esse PL vem no sentido de reduzir a Reserva Chico Mendes. O mesmo PL também quer transformar o Parque Nacional da Serra do Divisor numa Área de Proteção Ambiental (APA), o que retira a proteção integral da região. Trata-se de um dos lugares com uma das maiores biodiversidades do planeta, onde dias atrás foi avistada uma ave rara chamada Choca-do-Acre, que só é vista na Serra do Divisor. Então, a gente tem uma série de retrocessos e de ameaças voltados aos territórios. Tudo isso atendendo interesses do agronegócio, do capital internacional. Porque não há nenhuma justificativa plausível para isso. Inclusive, esse PL tem uma série de inconsistências, porque foi pensado, foi criado a partir da demanda de infratores, de moradores ilegais da reserva e eles têm essa relação com esses parlamentares. Chegaram a ir para uma agenda com o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente). A partir daí o ministro cancelou toda a fiscalização na Resex Chico Mendes, facilitando, assim, a entrada de mais pessoas ilegais, o cometimento de mais crimes ambientais. Esse PL é um sinal. Se ele for aprovado, com certeza vai abrir um precedente para que todas as outras reservas e unidades de conservação venham a sofrer também enormes ataques nesse sentido. Os criminosos ambientais vão se sentir estimulados a invadir e a pedir a redução de novos territórios, de novas reservas extrativistas.
Folha Santista: Como avalia os incêndios e a degradação ambiental na Amazônia?
Ângela: A Amazônia queimou como há muito tempo não queimava. As reservas extrativistas, principalmente a Chico Mendes, foram devastadas. Tudo isso muito estimulado pela sensação de impunidade que está reinando. Os órgãos estão sendo desmontados, recursos para áreas estratégicas estão sendo retirados e o governo não tem como dar respostas a essa situação. Por outro lado, com os discursos do Bolsonaro, as pessoas se sentem estimuladas a matar, a agir com violência contra as lideranças, a desmatar, a queimar.
Folha Santista: No cenário atual, você diria que os povos tradicionais estão sob risco?
Ângela: Dizer que o atual governo é um risco, uma ameaça às populações tradicionais, é verdade, porque tudo que tem feito é no sentido de fragilizar ainda mais essas populações. Infelizmente, a gente vive esse pesadelo. Se de um lado o governo estimula isso, por outro lado a bancada ruralista também se sente à vontade para apresentar e aprovar esses projetos contra as reservas extrativistas e as terras indígenas. Tudo isso ameaça muito o legado do meu pai.
Folha Santista: Como observa a ação do Ministério Público e outros órgãos fiscalizadores na Amazônia?
Ângela: Para as populações tradicionais, o Ministério Público (MP) ainda é quem cumpre o seu papel, o seu dever de tutelar essas populações e o meio ambiente nas suas câmaras específicas. Se não fosse o MP, as coisas estariam muito mais complicadas. O MP reverte atos irresponsáveis desse presidente. O papel do Ministério Público, nesse momento, tem sido essencial para a manutenção dos direitos dessas populações e dos direitos do meio ambiente também.
Folha Santista: Qual o legado do seu pai, Chico Mendes?
Ângela: O que a gente chama de legado do Chico, na verdade, é esse composto de unidades de uso sustentável, os territórios de uso comum, de uso coletivo, como as reservas extrativistas, reservas de desenvolvimento sustentável, projetos de assentamentos diferenciados, Flonas (Floresta Nacional), que são áreas com cobertura florestal protegidas no país. Tudo isso foi criado a partir das reservas extrativistas. É um legado que hoje alcança cerca de 12% da Amazônia. Não é pouca coisa, pois somado às terras indígenas protegem muito a Amazônia. Então, a gente precisa defender o legado do Chico. Eu defendo porque acredito nisso, acredito que é a saída, ainda com todos os desafios que se tem pela frente, porque tem reservas extrativistas criadas há 30 anos que ainda não estão consolidadas. Mas esse modelo, num primeiro momento, não permite mais que se mate pela posse da terra.