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Por Laís Granado*

“Falta cidade onde já tem casa”, afirmou o arquiteto Sérgio Magalhães ao ser questionado sobre o déficit urbano e a forma de se fazer política habitacional no Brasil – considerado por ele um modelo ineficiente, como aquele implementado no período militar dotado predominantemente de uma faceta mercadológica. A partir deste pressuposto, surge neste texto a seguinte indagação: A principal solução para o problema habitacional brasileiro é a construção de novas moradias? Quais seriam as alternativas pertinentes para minimizar o déficit e a inadequação habitacional brasileira?

Não é novo dizer que o Brasil é retrato da desigualdade social, ocupando a primeira posição no ranking de concentração de renda e riquezas (Relatório Global Wealth Report 2023). Isso reflete diretamente na condição habitacional das famílias aqui residentes.

Desde o final da década de 1940, a moradia foi garantida como direito universal, porém, são poucas as pessoas que têm acesso via mercado formal. Segundo Sérgio Magalhães, apenas 1/5 da produção habitacional se deu através das esferas públicas e privadas, sendo o restante da (imensa) demanda da produção habitacional de responsabilidade da população, por meio da autoconstrução, sendo essa a “arquitetura possível”.

Dados de 2019 da Fundação João Pinheiro mostram que o déficit habitacional brasileiro soma aproximadamente 6 milhões de famílias, enquanto isso, são mais de 24 milhões de moradias inadequadas sem acesso à infraestrutura ou em condições irregulares. Grande parte das políticas habitacionais apresentadas pelo Estado brasileiro é voltada à construção de novas unidades habitacionais. Porém, os números nos mostram que as situações demandam ações específicas e que vão muito além da provisão habitacional – dentre as ações a serem pensadas estão a locação social, a aplicação da lei de assistência técnica pública e gratuita, os programas de urbanização de favelas, a reabilitação de edifícios ociosos e que não cumprem função social, dentre outras alternativas que vão além do que tem sido feito majoritariamente e que não tem apresentado resultado efetivo na redução do déficit habitacional.

Apesar das políticas públicas serem majoritariamente voltadas à provisão habitacional, é pertinente abordar os momentos em que as políticas habitacionais levaram em consideração questões mais específicas e contextuais e que abrem novas possibilidades para as políticas habitacionais.

Dentre as políticas mais assertivas, um importante instrumento para assegurar a melhoria habitacional e garantir o direito à moradia foi a criação da Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS). Amparada pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, no ano de 2008 é promulgada a Lei Federal nº 11.888 que garante o direito à assistência técnica pública e gratuita, para famílias com renda de até três salários mínimos. Deste modo, aqueles que se enquadram neste critério deveriam ter seus direitos assegurados, com apoio financeiro da União aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, para a execução de serviços permanentes e gratuitos de assistência técnica para habitação de interesse social.

Apesar da lei da assistência técnica ter sido aprovada em 2008, o enfrentamento para a sua implementação é antigo e possui ações efetivas desde a década de 70. Esta lei é um importante instrumento para democratizar o direito à moradia, à cidade e ao campo. Contudo, decorridos mais de 15 anos de sua promulgação, poucos são os municípios que conseguiram implementá-la, não sendo aplicada em grande parte das cidades brasileiras por desconhecimento ou falta de interesse dos gestores públicos. Atualmente, está em discussão uma atualização da lei federal 11.888/2008 com o intuito de criar uma política de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social, assim como de um programa nacional de ATHIS.

O termo ATHIS é utilizado para se referir a um campo de atuação profissional. Entende-se que as ações devem ser multidisciplinares e contar com profissionais das áreas de arquitetura e urbanismo, engenharia, direito, serviço social, sociologia, entre outras áreas correlatas, aproximando os profissionais de demandas concretas e urgentes das populações que vivem em condições de vulnerabilidade social. Cabem aos profissionais atuações voltadas ao desenvolvimento de projetos, regularização fundiária, acompanhamento de obras, reforma, ampliação, requalificação de espaços públicos, que são práticas um pouco mais usuais da política habitacional de interesse social. Mas, para além disso, cabem também processos que envolvem a resistência e o enfrentamento na luta pela moradia digna, envolvendo entidades profissionais, defensoria pública, universidades, movimentos sociais, entre outros agentes, na busca pela ampliação de políticas públicas que visam a garantia de direitos.

O município de Santos dispõe de legislação de ATHIS desde 2004 e, apesar disso, nunca saiu do papel. Dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentam a cidade de Santos como a 17ª melhor economia e a 9ª maior renda per capita do país. Porém, entre os municípios que formam a Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS), Santos apresenta o menor percentual de crescimento, em relação ao número de habitantes residentes (IBGE, 2010). A especulação imobiliária eleva o custo da terra e o valor de mercado dos empreendimentos habitacionais impede que novos moradores de média e baixa renda se instalem no município. Muitas famílias acabam migrando para cidades vizinhas, com custo de vida inferior ao de Santos, mas por ser o maior polo regional e detentor de grande parte dos empregos no setor de comércio e serviços, diversos trabalhadores acabam sujeitos a um intenso movimento pendular. Aqueles que permanecem na cidade ficam sujeitos aos altos valores de aluguéis ou aos assentamentos precários, onde o direito à cidade é negligenciado pelo poder público.

Santos é uma cidade extremamente desigual. Apesar de ter o maior porto da América Latina, a belíssima orla e seus diversos imóveis de alto padrão construtivo, há também a maior favela sobre palafitas da América Latina, inúmeros cortiços, em sua maioria na região central, além dos assentamentos precários, ocupações e favelas. São mulheres, idosos, crianças vivendo em meio à miséria, em contato com a água contaminada que causa doenças, além de problemas respiratórios e de pele por conta do extremo mofo e umidade, em locais sem a mínima infraestrutura urbana.

A cidade de Santos não possui secretaria de habitação, sendo imputada à Companhia de Habitação (COHAB Santos) e à Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SEDURB) as atribuições relacionadas às políticas habitacionais do município, o que dificulta muito o acesso às políticas públicas.

O fato de Santos já possuir a lei municipal 2.211/2004, que deveria garantir o atendimento em relação ao programa de assistência técnica, favorece a aplicação deste na cidade. Porém, ainda é necessário que haja um decreto que regulamente a lei municipal, conforme exigência do parágrafo 1º do artigo 2º, da lei em questão.

A lei municipal data de 2004 e a lei federal de 2008 e, apesar disso, não são aplicadas em grande parte dos municípios brasileiros. É inconcebível o desacato à legislação brasileira, verificado pela falta de aplicação das políticas públicas, além dos retrocessos e do descaso com as famílias de baixa renda.

No intento de transmutar essa situação alarmante, a sociedade civil organizada tem estabelecido parcerias, de modo que sejam garantidas a assistência técnica e sua efetiva aplicação em Santos e nos outros oito municípios da Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS).

São diversas organizações parceiras que vêm desenvolvendo projetos voltados às camadas mais invisibilizadas da sociedade, como o Instituto Procomum, Instituto Elos, Associação Cultural José Martí, Instituto Arte no Dique, entre outros. Voltado especificamente para a implementação da ATHIS nos municípios da região, o coletivo ATHIS na Baixada, junto a organizações da sociedade civil, universidades e fomento do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, desde 2019, vem desenvolvendo projetos no intuito de garantir o direito à moradia e à cidade. Os projetos têm como objetivo sensibilizar o poder público, capacitar diferentes sujeitos envolvidos na política habitacional, assim como assegurar melhores condições de habitabilidade para a população da RMBS. A partir desses projetos, tem sido possível construir e consolidar uma rede de profissionais de diferentes áreas, assim como estabelecer a participação de lideranças comunitárias, moradores de áreas periféricas da Baixada Santista e desenvolver projetos relevantes junto a diferentes comunidades.

Apesar de a habitação ser um direito constitucional, é constantemente colocado em risco pelo Estado ou pelo mercado. Portanto, a atuação dessas organizações é fundamental para que se desenvolvam projetos para além do estado. Porém, cobrando por políticas públicas mais eficientes e eficazes para a habitação de interesse social, em busca da garantia de melhores condições de moradia para a população brasileira.

Referências:

AMORE, Caio Santo et al. Resistências urbanas e assessoria técnica, a arquitetura possível e necessária. Cap. 38. O direito achado na rua: Introdução crítica ao direito urbanístico. Volume 9. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. p. 348-358.

BRASIL. Decreto nº 11.888, de 24 de dezembro de 2008. Assistência técnica pública e gratuita. Brasília, DF, 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11888.htm>. Acesso em: 05/06/20.

COELHO, Laís Granado Ferreira, LIMA, Daniela Colin, CRETE, Jean Pierre. ATHIS: Análise crítica das políticas habitacionais e aplicações das leis de assistência técnica no município de Santos – SP. III Seminário Nacional de Urbanização de Favelas.  Salvador, 2018.

MARICATO, Ermínia. Autoconstrução, a arquitetura possível. In: MARICATO, Ermínia (org). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo. Editora Alfa-Ômega, 2ª ed., 1982, p. 71-93.

*Laís Granado é arquiteta e urbanista e atua no coletivo ATHIS na Baixada, na Escola Nacional Paulo Freire e na assessoria técnica Peabiru TCA com gestão de projetos, formações, fiscalização de obras, entre outras funções; é pesquisadora do Núcleo da Baixada Santista do Observatório das Metrópoles, que desenvolve o projeto Observatório das Metrópoles nas Eleições: um outro futuro é possível.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.