Um relato de uma professora da rede pública do Rio de Janeiro à reportagem da BBC Brasil mostra a destruição que o governo Jair Bolsonaro (Sem partido) tem proporcionado à educação pública e a falta de políticas sociais e econômicas que tem levado milhares de famílias ao mapa da fome.
“Fui pegar algo para ela na minha mochila — porque eu sempre levo um biscoitinho ou uma fruta para mim mesma. Mas não deu tempo. Ela desmaiou em sala de aula“, disse a professor da rede municipal do Rio de Janeiro.
A estudante, de 8 anos, é negra e estuda em uma escola próximo a um complexo de favelas na Zona Norte da capital fluminense.
Segundo a professora, o episódio aconteceu em setembro, quando a menina chegou à sala de aula “bem atrasada” e com as mãos geladas, embora o tempo estivesse quente.
“Ela sentou e abaixou a cabeça na mesa. Eu estranhei e chamei ela à minha mesa. Ela veio e eu perguntei se ela estava bem. Ela fez com a cabeça que estava, mas com aquele olhinho de que não estava. Perguntei se ela tinha comido naquele dia, ela disse que não”.
“Eu fiquei realmente sensibilizada por essa situação”, conta a professora. “Por que é isso: a fome. Uma fome que a criança não sabe expressar a urgência. E que envolve muitas vezes a vergonha. Para ela é algo humilhante, por isso ela não consegue expressar.”
Cenário se repete em todo o país
A reportagem ainda traz dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrando que o que ocorreu no Rio de Janeiro se repete em todo o país.
“Professores da rede pública de todo o Brasil relatam episódios semelhantes, num momento em que o país soma 13,7 milhões de desempregados e a inflação de alimentos consumidos em domicílio acumula alta de mais de 13% em 12 meses”, diz o texto.
Segundo professores de todo o país ouvidos pela jornalista Thais Carrança, os alunos com fome sofrem com perda de motivação e apresentam episódios de agressividade com colegas e educadores.
“A gente respira fundo e vai fazer campanha para cesta básica, para coleta de alimentos, para mantê-los em sala de aula. Eu me sinto às vezes cansada, mas me sinto na obrigação de me manter firme e fazer algo por essas crianças, para que eles sintam que podem contar conosco, que não seremos mais um a abandoná-los”, disse uma professora de língua portuguesa na rede estadual do Paraná, com quase 30 anos de profissão.
Em outro caso na Zona Oeste do Rio, relatado por um conselheiro tutelar, uma menina de 7 anos agrediu um colega e xingou a professora.
“Ela havia agredido uma colega, depois desafiou a professora e, por fim, acabou tentando agredir a direção. A escola nos chamou para conversar com essa criança e sua família, para saber se se tratava de uma reprodução de violência [quando uma criança agredida reproduz a violência que sofre]. Mas, conversando com essa criança, ela nos relata vontade de comer”, contou.
Em Sumaré, a cerca de 100 quilômetros da capital paulista, uma professora de Educação Física relata que alunos desmaiam de fome durante as aulas.
“Com a volta às aulas presenciais, depois da pandemia, temos observado vários casos de alunos passando por necessidade. Casos de fome mesmo, de que o único alimento que o aluno tem é na escola”.
Em um dos casos, a professora diz que o aluno desmaiou em uma aula à tarde porque estava sem comer o dia todo.
“Nós percebemos na educação física, porque o aluno desmaiou na quadra. Aí, conversando, ficamos sabendo que ele ainda não tinha se alimentado naquele dia e já era o período da tarde”, relata a educadora, explicando que, na escola estadual, há apenas uma refeição por turno, na hora do intervalo (10h para os alunos da manhã e 16h para os da tarde).
Deixando o estudo para trabalhar
Outra realidade enfrentada nas escolas é a evasão dos alunos, que têm deixado as aulas para trabalhar e ajudar no sustento da família.
“A partir dos 13, 14 anos está acontecendo essa evasão, que é ainda mais grave no Ensino Médio. Acredito que, com o fim do auxílio emergencial, isso pode aumentar”, relatou a professora de Sumaré.
“Tenho um aluno do 7º ano e a irmã dele está no Ensino Médio no mesmo colégio. Eles foram criados pela avó e, no ano passado, ela faleceu devido à covid e eles simplesmente ficaram órfãos. Eles não têm nenhum recurso, ficaram na casa de parentes. E nós temos vários casos assim, são muitos casos por turma. A escola está tentando monitorar para ver se essas crianças estão bem, quem ficou responsável por elas e se elas contam com alguma rede de proteção”, contou uma professora da rede pública do Paraná.
Leia a reportagem de Thais Carrança no site da BBC Brasil