Ao avaliar a atual Encenação da Fundação da Vila de São Vicente, é imperativo abordar criticamente o espetáculo à luz de uma perspectiva decolonial, que busca desafiar e superar estruturas de poder e conhecimento herdados do colonialismo, reconhecendo e valorizando outros saberes e práticas culturais historicamente marginalizadas. Envolve uma crítica profunda ao resultado da colonização na formação de nossa modernidade e busca descolonizar formas de opressão, promovendo a diversidade e a igualdade. Enquanto a peça celebra a história e a cultura, é vital reconhecer as falhas que perpetuam narrativas eurocêntricas e subalternizam as contribuições dos povos indígenas e afrodescendentes.
O espetáculo, apesar de sua grandiosidade e longa tradição, reproduz uma visão limitada da história, concentrando-se em eventos eurocêntricos e negligência as ricas tradições indígenas e africanas que moldaram a identidade brasileira. A narrativa centrada em figuras coloniais destaca uma abordagem que reforça a supremacia cultural, ignorando a pluralidade de vozes que constituem a verdadeira essência da nação. Consultei a experiente diretora e atriz de teatro Miriam Vieira que complementa:
“Sou da geração que inventou a Encenação da Fundação da Vila de São Vicente. É preciso ter a fineza de desinventar para reinventar, passar pela história contada de outros pontos de vista históricos atualizados e contextualizados a partir de dados que dispomos por antes da invasão colonizadora. Todos nós precisamos nos reeducar, reaprender a ter olhares mais horizontalizados para ver e contar o todo”, fala Miriam.
Analisando o projeto do espetáculo a ausência de uma representação autêntica das contribuições dos povos indígenas é notável. O espetáculo se fixa na figura do colonizador, deixando de explorar as práticas sustentáveis, a sabedoria ambiental, fitoterapia, agricultura natural e as tradições culturais dos povos originários. Uma abordagem decolonial exigiria uma revisão profunda, integrando perspectivas indígenas que desafiem a narrativa histórica tradicional. Existiam centenas de povos originários, com formações sociotécnicas territoriais avançadas, com línguas e conhecimentos importantes para uma vida biocêntrica (que coloca a vida no centro do saber). Perguntei ao Cacique Ronildo Wêrá Guarani, da Aldeia Paranapuã (São Vicente), que me disse:
“Essa encenação deveria também destacar grandes heróis indígenas, mostrando a força e resistência dos povos originários, uma realidade viva até hoje para nós. Antigamente, colonizadores matavam nossos antepassados com armas; hoje, os descendentes desses colonos matam a história e cultura dos povos originários através de canetadas, criando leis para enfraquecer nossa luta em diversas questões: território, saúde, educação, cultura e modos de ser e viver dos povos indígenas”, crítica, Cacique Ronildo.
Da mesma forma, a herança afrodescendente é sub representada, limitando-se a uma visão estereotipada e folclórica. A rica contribuição dos afrodescendentes para a formação cultural e social do Brasil é minimizada, perdendo-se a oportunidade de destacar a importância da capoeira, da música, das religiões afro-brasileiras e das tradições culinárias únicas que permeiam a história. Por acaso, você sabia que há registros de que Martin Afonso, Tomé de Souza, padres e irmãos da Companhia de Jesus traziam de negros músicos integrando suas frotas?
A resistência afrodescendente, evidenciada em quilombos e revoltas, merece uma abordagem mais profunda. O espetáculo poderia se tornar uma plataforma para reconhecer e celebrar a luta pela liberdade, desafiando ativamente as estruturas opressivas que persistiram ao longo da história. Em relação a isso, Jair Moreira, do Grupo Equipe Plataforma e que dirigiu umas das encenações de 2023, denominada Gohayó – Experiencie a Fundação de um Território (roteiro de Thayany Muniz), lamenta:
“A encenação que dirigi em 2023 na periferia de São Vicente desconstruía todo o terror sempre contado anualmente na arena da praia. Pensei que dar protagonismo a indígenas e à comunidade seria divisor de águas e influenciaria esta edição, mas não! Me entristece saber que nada mudou; a história continuará a se repetir. Encenar a matança de indígenas e pretos no meio de uma arena assistida por dezenas de milhares de pessoas é forte e agressivo. Um Pelourinho é símbolo de São Vicente e a estátua de Martin Afonso está na frente da prefeitura, isso explica muito”, lamenta-se, Jair.
A participação da comunidade, embora louvável, precisa transcender o aspecto meramente figurativo. Uma abordagem decolonial incentivaria uma colaboração mais significativa, proporcionando espaço para que as comunidades indígenas e afrodescendentes compartilhem suas próprias narrativas e contribuições. E Miriam Vieira destaca:
“Não acredito em um espetáculo que gaste mais com ferros e estruturas do que no humano. Se pensamos lá atrás desta forma é porque também fomos educados a contar desta forma. É preciso estar alinhado com os novos contextos históricos e investir no artístico e no cultural que tenha como principal meta o humano, que seja próximo a realidade dos que foram e são excluídos, apagados, invisibilizados e marginalizados”, fala.
Em conclusão, a Encenação da Fundação da Vila de São Vicente, apesar de seu impacto cultural, carece de uma abordagem decolonial mais robusta. Desafiar as narrativas tradicionais, dar visibilidade às vozes marginalizadas e reconhecer plenamente as contribuições dos povos indígenas e afrodescendentes são passos essenciais para uma representação mais justa e inclusiva da história brasileira nos palcos nacionais.
Contato: DANILO TAVARES – [email protected]
Quem é Danilo Tavares? Produtor cultural, documentarista, já coordenou diversas oficinas de cinema digital, é gestor e desenvolve propostas de projetos para editais culturais e sociais. Atualmente é proprietário da Zopp Criativa Produções, empresa com selo Estratégias ODS, diretor de projetos do Clube do Choro de Santos, membro do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista e diretor da Casa Crescer e Brilhar (São Vicente).