Foto: Newton Rodrigues

Por Davis Gruber Sansolo*

Todo conceito emerge de um contexto histórico e geográfico específico que proporciona as condições sociais, políticas, culturais e, dependendo do conceito, naturais também. A título de exemplo tratemos do ideário liberal presente no período entre o século XIX até 1929, quando houve a quebra da bolsa de Nova York, representando uma das maiores crises do capitalismo. O New Deal, promovido pelo presidente americano Franklin Delano Roosevelt, que provocou uma grande reforma na economia, findou com a perspectiva da mão invisível do mercado como única reguladora da dinâmica social e econômica defendida pelos capitalistas. Portanto, ainda que hajam saudosistas do liberalismo, o conceito conhecido como neoliberalismo, mesmo que contenha resquícios das ideias nascidas no século XIX, dentre outras, o estado mínimo, emerge em um outro contexto histórico, político e econômico.

A década de 1970, dentre outros fenômenos, foi marcada pela crise do petróleo desencadeada pela criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), como resultado do conflito árabe-israelense, que por sua vez, tinha como pano de fundo, a guerra fria travada entre EUA e URSS. A crise do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State), resultante dos problemas econômicos provocados pela crise do petróleo, proporcionou a ascensão de Ronald Regan nos EUA e Margaret Tatcher (UK), duas lideranças que trouxeram para gestão pública, a ideia do estado neoliberal. Um novo paradigma do próprio capitalismo que resgata o ideário liberal, mas em um outro contexto histórico, científico, tecnológico, político e, portanto, social. Assim sendo, embora o neoliberalismo contenha alguns pressupostos originários do liberalismo, ambos conceitos se distinguem por suas origens e contextos.

Da mesma forma pode-se abordar conceitos como o neofascismo, ou neonazismo, que se distinguem do fascismo e do nazismo originados na primeira metade do século XX, resultantes de um contexto histórico e geográfico muito específico. As mudanças da hegemonia global, da divisão internacional do trabalho, dos processos de descolonização e disputas e reordenamento territorial na Europa e sua relação com o Oriente e com a África, criaram as condições para ascensão de perspectivas ditatoriais e nacionalistas em que o Estado assumiu o protagonismo da visão supremacista, utilizando-se inclusive o darwinismo como justificativa científica para execução de milhões de humanos, propiciado por meio do uso do fordismo no processo industrial de  extermínio da vida.

Portanto, ainda que fragmentos originados nesse período da história ocidental, os movimentos contemporâneos neofascistas e neonazistas, possuem distinções que se explicam no mundo contemporâneo. As migrações (resultado do processo de hegemonia europeia e norte-americana sobre o mundo global) de populações asiáticas, árabes e africanas para Europa têm sido uma das razões do fortalecimento de ideias xenofóbicas que, por sua vez, se aliam a grupos que se inspiram nos conceitos e ideias originados na primeira metade doo século XX. Novamente destacamos o novo contexto em que a as redes mundiais de telecomunicação (satélite, internet etc) assumem um papel de articulação e mobilização política numa velocidade nunca antes observada.

Um outro conceito são as mudanças climáticas. Como se sabe sempre ocorreram ao longo da história natural do planeta. Atualmente, quando se trata do tema, o conceito vem carregado de significâncias relacionadas à ação humana na escala global, articulado ao conceito de antropoceno.

Portanto, a economia solidária, enquanto conceito, também é situado. Tem seu significado articulado a um contexto histórico, geográfico definido. Nasce da elaboração de Paul Singer, que propôs um outro paradigma para economia política. Parte das ideias socialistas em que se questiona a exploração do homem pelo homem. Portanto uma matriz marxiana.

Contudo, do ponto de vista empírico, se situa a partir de fenômenos, sobretudo brasileiros, do empobrecimento da população trabalhadora, notadamente durante a década de 1990, que buscam alternativas de sobrevivência. Em outros países cuja crise do capitalismo também se expressa, os trabalhadores também assumiram os meios de produção, não como propriedades estatais tal qual nos países de cepa comunista (URSS, Cuba, Coreia do Norte e China), mas como empresas coletivas. Empresas que sofreram processos falimentares com grandes passivos trabalhistas e que foram assumidas pelo coletivo de trabalhadores.

Na perspectiva da economia solidária a figura do patrão desaparece e é substituída por processos coletivos autogestionários. A autogestão é a essência do coletivismo da economia solidária proposta por Paul Singer.

O movimento de luta dos trabalhadores se tornou um processo político e institucional, no Brasil. O Fórum Social Mundial foi o ninho de onde nasce o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, portanto um movimento social. Deste surgem Fóruns estaduais e Regionais. Surge a Secretaria Nacional de Economia Solidária e, desta, uma política ainda que frágil em nível nacional, mas que proporcionou a formação de gestores em diversas esferas do poder público que se responsabilizam em animar a possibilidade de políticas de economia solidária incentivada ou promovida pelo poder público.

Alguns movimentos sociais defendem que as comunidades e povos tradicionais já praticavam a economia solidária sem que esse termo fosse utilizado. Penso que não é o caso, pois as práticas de reciprocidade econômica desenvolvidas pelas comunidades tradicionais nascem em outro contexto histórico e político, ainda que possam e, em meu ver, seria muito bem-vindo, dialogar com o movimento político da economia solidária.

Não há dúvida que a crise do capitalismo se expressa em diversas partes do mundo, inclusive nos países hegemônicos. Portanto, como contradição nesses países, também aparecem iniciativas que dialogam com o que denominamos de economia solidária. Todavia, defendo que esse seja um conceito ainda em construção e legitimamente latino-americano, sobretudo brasileiro.

Na Baixada Santista, o Fórum de Economia Solidária (FESBS) tem se debruçado em desenvolver ações de natureza política, educacional, de sociabilidade e de promoção da cultura e do trabalho e renda.

Do ponto de vista político, o FESBS se posiciona em relação à economia solidária como uma via para o desenvolvimento regional. Para isso traça propostas que são dirigidas aos fazedores de políticas públicas municipais e regionais, antes dos processos eleitorais e durante a gestão dos políticos eleitos.

Quanto ao processo pedagógico, diversas ações como encontros virtuais temáticos têm sido produzidos para o debate aberto, sobre diversos temas relacionados às ideias da economia solidária. Cursos de formação de gestores e de atividades econômicas solidárias, como turismo de base comunitária, também têm sido promovidos. A inserção do conteúdo nas escolas tem sido uma das estratégias também adotadas, como o caso da iniciativa da Cooperativa Professores Cipó Educação, em parceria com a prefeitura de Santos.

Além do mais, a Secretaria Executiva do FESBS tem se tornado um espaço pedagógico, onde cada um cresce e aprende com o outro, independentemente da formação acadêmica que possua. A realidade é a grande fonte de troca de conhecimento e sempre respeitada e valorizada pelos membros da Secretaria.

A sociabilidade tem sido promovida em encontros presenciais onde se fortalecem os laços de amizade, de respeito mútuo, de valorização da equidade de gênero, da luta antirracista e da promoção dos valores de reciprocidade.

Festas como a Esquerdantina têm sido o locus de felicidade de encontro entre os membros do FESBS, onde músicos voluntários proporcionam a ocupação do espaço público para que possamos nos entreter uns com os outros. As feiras da economia solidária, como a de Bertioga, são exemplos de encontros prazerosos, onde as pessoas que possuem talentos produtivos colocam à disposição dos visitantes seus talentos como produto de relações afetivas e não como meras mercadorias. É uma felicidade quando nos encontramos nas feiras.

Finalmente, o grande desafio que é a geração de trabalho e renda pode ser exemplificado pelo desenvolvimento de algumas ações, como o Tur na Serra, resultante de um processo longo de desenvolvimento do Turismo de Base Comunitária (TBC) no bairro Cota 200, em Cubatão.

Observa-se o mesmo fenômeno no TBC na Barra do Una e na Aldeia Tambaçú Reko Ypy, ambas em Peruíbe. Não se pode deixar de falar do trabalho que a Associação Flor do México, de São Vicente, que atua com mulheres que se articulam para prestação de serviço de alimentação, assim como o trabalho realizado pela Associação Filhos de Aruanda, com as mulheres de uma ocupação no bairro Rio Branco, também em São Vicente.

Ressalte-se as atividades da União das Mulheres Produtoras da Economia Solidária de Peruíbe, com as suas integrantes costureiras, artesãs, agricultoras agroecológicas e aquelas que se dedicam à produção de pães. A Livres Coop Rede de Produção de Consumo Consciente, como um coletivo de consumo de produtos agroecológicos, os ecobikers ligados ao Livres.

A Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) Ecosofia, fruto de mães de alunos da Escola Waldorf de Santos e um produtor de São Bernardo do Campo, e a CSA Acerola com um produtor do bairro Saboó e consumidores de Santos. Pode-se citar, ainda, a Organização de Controle Social (OCS) em Itanhaém ou o Grupo de Consumo Consciente de Peruíbe, que integra consumidores e mulheres produtoras de agroecológicos em Peruíbe, dentre outras iniciativas econômicas solidárias.

Voltando aos aspectos políticos, a criação do marco legal da economia solidária, em alguns municípios da Baixada representa um avanço no diálogo com o poder público, ainda que não se tenha avançado em políticas municipais claras e definidas sobre o tema.

A situação territorial da Baixada é bastante precária, pois há uma nítida divisão socioespacial, onde a parte mais importante de investimentos públicos concentram-se na orla dos diversos municípios. O desemprego, a miséria se concentram entre a estrada (Padre Manoel da Nóbrega) e a Serra do Mar. O turismo, a construção civil e o porto são as atividades mais proeminentes da região. Há um processo de desindustrialização, por um lado, e de contaminação e degradação ambiental por outro, associado aos processos mais intensos e frequentes de origem climática e que atingem principalmente os mais pobres e as aldeias indígenas.

Portanto, o desafio é da organização dos excluídos ou os explorados, de tal forma que possam ter maior emancipação econômica, na busca de um envolvimento em escala regional. Mas não uma economia que vise produzir mais do mesmo, mas que valorize a diversidade de gênero, a luta antirracista, os vínculos em nome do bem comum e que a conservação da natureza esteja em um nível de mesma importância quanto a geração de renda.

Sendo assim, há muito o que se fazer, mas, sobretudo, compreender que a economia solidária é um conceito em construção e que ele é situado, possui significâncias enraizadas nos sítios simbólicos de pertencimento, no nosso caso da Baixada Santista, mas que se articula a um processo histórico e geográfico claramente definido e que, portanto, não cabe analogias com outros conceitos que possuem outros enraizamentos.

*Davis Gruber Sansolo é professor da Unesp/câmpus São Vicente.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.