Por Newton José Rodrigues da Silva, Juanita Trigo Nasser, Guilherme Prado e Thais Maria Muraro da Silva*
O afastamento social fez surgir, nas redes sociais, a divulgação da mensagem de que se deve adquirir produtos e serviços no pequeno comércio local para que o dinheiro circule onde vivemos e gere postos de trabalho.
Como exemplo, pode-se citar a Rede Solidária de Mongaguá/SP, que utiliza o seguinte slogan: “Valorize a produção local, incentive quem está próximo de você”.
Apesar de ser uma proposta de inovação social, que se verifica em diferentes territórios do Brasil e de outros países, desde a década de 80 emergiram na França os primeiros textos que criaram a fundamentação teórica de ativação de proximidades para promoção do desenvolvimento local.
Denominada de economia de proximidade, essa forma de organização da economia pode ser definida como as relações diretas entre fornecedores e consumidores, assim como entre os empreendimentos coletivos locais, como cooperativas e associações, além de órgãos públicos que integram a sua dinâmica. Assim, o seu objetivo principal é melhorar o bem-estar, valorizando o território para e pelos seus habitantes.
A economia de proximidade tem como base diferentes proximidades, que em interação podem ser fatores determinantes para viabilizar empreendimentos de gestão familiar e econômicos solidários, visto que facilitam a organização dos agentes e demais integrantes de determinada cadeia produtiva para que assumam a postura de colaboração e de valorização dos recursos locais.
As proximidades podem viabilizar as ações de solidariedade em seu sentido de reciprocidade entre indivíduos e organizações de determinado território. Neste caso, a economia de proximidade assimila a forma de organização da economia solidária.
A economia solidária é definida de forma clássica como “conjunto de atividades econômicas – de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas sob a forma de autogestão”.
Compreende uma variedade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas, comércio justo e consumo solidário.
Trata-se de uma forma de organização da produção, consumo e distribuição de riqueza centrada na valorização do ser humano e não do capital, caracterizada pela igualdade.
As ações no coletivo realizadas por empreendimentos de gestão familiar ou individual para resolver problemas comuns também são iniciativas econômicas solidárias. Os grupos de cultura, como teatro, música e dança que se organizam de forma autogestionária, também integram a economia solidária.
Há diferentes proximidades que podem ser ativadas para a construção da economia de proximidade e, concomitantemente ou posteriormente, se construa a economia solidária.
A proximidade geográfica é de fundamental importância pelo fato de possibilitar colocar frente a frente aquele que produz ou presta serviços com os consumidores, sem intermediários, ou facilitar a participação de profissionais da área de ciência, tecnologia e gestão nos processos de produção e comercialização disponibilizando os seus conhecimentos.
No entanto, não é suficiente a existência de proximidade geográfica caso não seja ativada, ou seja, se os agentes de determinado território, como produtores, prestadores de serviços, poder público, consumidores, não se colocarem em relação para construir a coesão social necessária que vai viabilizar o resultado econômico de toda a cadeia produtiva em questão.
Para isso, é necessário que haja proximidade organizacional, que é dada pela capacidade das pessoas e instituições do território viabilizarem um projeto coletivo. A vitalidade econômica de uma atividade ou território é incontestável quando se constrói a proximidade organizacional, visto que os agentes passam a trabalhar de forma coordenada e alinhada, ou seja, na construção do mesmo quadro de interesse comum.
Há, ainda, proximidades que podem ser facilitadoras do processo organizacional, como as proximidades cultural e institucional. A primeira refere-se a grupos com origem no próprio território, como caiçaras, indígenas, quilombolas, marisqueiras, agricultores familiares, imigrantes de um mesmo território de origem ou mulheres que se unem para trabalhar preservando as tradições culturais de determinado local, como artesãs, por exemplo.
Já a proximidade institucional é representada, principalmente, pela presença de instituições que atuam em determinado território, independentemente da proximidade geográfica, e têm como objetivo o apoio a empreendimentos de gestão familiar e econômicos solidários, como associações e cooperativas.
Esse tipo de proximidade é importante por possibilitar interações com a pesquisa, serviços de extensão rural, indígena e pesqueira, universidades, organizações não governamentais e voluntários.
No entanto, também necessita ser ativada. Caso contrário, cada integrante das instituições trabalhará de acordo com a sua própria lógica e não para e com o coletivo.
A economia de proximidade não pode se limitar a ser um circuito curto de produção e comercialização e reproduzir a mesma lógica do mercado, tal como se apresenta de forma hegemônica, ou seja, fundamentado na competição, limitando-se ao toma lá dá cá de dinheiro por mercadorias e serviços.
A economia de proximidade pode e deve ser construída de acordo com as proximidades cultural, geográfica, institucional e organizacional.
No entanto, caso a solidariedade em forma de reciprocidade, ou seja, de apoio mútuo, seja o fator de ligação dos diferentes agentes da cadeia, a tendência é que se tenha uma economia de proximidade organizada com os princípios e valores da economia solidária, fundamentando-se na mutualização de recursos, estabelecimento de relações de confiança, horizontalidade e reciprocidade.
Neste caso, ativa-se, também, a proximidade de propósitos, fundamentada na autogestão, democracia, inclusão socioeconômica e respeito ao ambiente.
Assim, além da organização para que a economia local tenha dinâmica, a cooperação estabelecida entre os diferentes agentes de toda a cadeia, sejam eles produtores, prestadores de serviços, profissionais ligados ao poder público, voluntários, consumidores, transformam a sua configuração para que tenha mais sustentabilidade, visto que terá maior capacidade de reação em caso de enfrentamento de uma crise econômica ou mesmo as consequências de um afastamento social, como este provocado pela pandemia do coronavírus.
Quando a proximidade de propósitos é ativada, gera-se maior possibilidade de ativar a proximidade geográfica. Sabe-se que é um desafio enorme ativá-la em meio a uma economia desnacionalizada, impessoal e globalizada como a que temos.
Trata-se de um sistema que busca sempre o menor custo e escala para a produção em um só lugar, em detrimento das comunidades que não produzem mais sua subsistência, tornando-se totalmente vulneráveis.
Para criar o sonho da relocalização da economia através da proximidade geográfica, há que se ter uma tática, mais viável ao se unir pequenos poderes produtivos (agricultores familiares, artesãos etc) e pequenos poderes de compra (consumidores antes dispersos). A partir disso, é possível criar poder econômico que possibilite um planejamento democrático daquela cadeia, que assim poderá fazer realçar a proximidade geográfica.
Observa-se, inclusive, que neste período emergiram na Baixada Santista Redes de Economia Solidária nos municípios de Peruíbe, Itanhaém, Mongaguá e Bertioga como forma de reação às dificuldades de comercialização tradicional de produtos e serviços.
Na cidade de Santos, o Livres, grupo de consumidores conscientes, já existia antes da pandemia, mas registrou aumento no número de consumidores e maior interesse de outros fornecedores.
Em cada experiência dessas cidades, a economia de proximidade foi a primeira forma de organização para, depois, haver um aprofundamento das relações de reciprocidade com base na proximidade de propósitos.
Essa organização se deu, majoritariamente, com a migração dos agentes para a construção de um quadro de interesse comum, que é a dinamização da economia local com fundamentação na lógica de trabalho e renda ancorada nas relações de reciprocidade.
No entanto, nas cidades citadas havia pessoas que já tinham contato com a teoria da economia solidária, seus princípios e valores, principalmente por meio dos cursos e palestras do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista (FESBS) ou participação nas redes sociais do Fórum.
Outras, adotavam práticas sem saber que se tratava de economia solidária. Essas pessoas tiveram um papel determinante para colocar em relação os diferentes agentes para a construção das redes de cooperação/reciprocidade, que viabilizaram a economia solidária.
Assim, é importante ressaltar que nenhum projeto nasce bom, é a rede sociotécnica que se forma que o tornará bom, será a capacidade de formação de alianças entre os diferentes agentes que será o fator determinante do sucesso ou insucesso do projeto.
O caráter de transição da economia de proximidade para a economia solidária é evidente, por exemplo, em Peruíbe. Diferentes agentes que trabalhavam na Feira do Produtor da cidade atualmente fazem entregas em domicílio de caixas denominadas agroecológicas, com produtos de diferentes agricultores familiares, empreendimentos familiares urbanos de produção de produtos de uso cotidiano e associações.
A montagem das caixas se dá no próprio espaço da feira. Posteriormente, o dinheiro é distribuído pelos produtores de acordo com os critérios estabelecidos coletivamente.
Há, ainda, oito coletivos de produção e comercialização organizados. Observa-se a reciprocidade entre fornecedores, entre estes e consumidores e, também, com a participação do poder público por possibilitar a utilização do espaço e disponibilizar uma gestora para apoiar as atividades.
Essa reciprocidade multilateral, ou seja, entre diferentes segmentos, fez com que o arranjo econômico da economia de proximidade desse luz para uma iniciativa econômica solidária, constituindo-se em uma rede de colaboração que envolve a mobilização coordenada entre grupos de diferentes setores e naturezas, orientadas para soluções de problemas coletivos.
O poder público, na medida em que estabelece vínculos com esses grupos, fortalece as redes solidárias, formando-se um ciclo de reciprocidade.
Alguns são empreendimentos já consolidados, como cooperativas e associações, outros são empreendimentos de gestão familiar ou individual. É importante ressaltar que as decisões tomadas no seio dessas redes são feitas pelos seus participantes, de forma democrática.
A mudança de uma rede caracterizada como de economia de proximidade para outra de economia solidária deixa para trás a relação minimalista, de troca de dinheiro por produtos e serviços, para se ter colaboração entre todos os envolvidos na gestão.
Vale ressaltar que o grupo arrecadou mais de R$ 4.500,00 em dois meses de atuação e decidiu como seria a divisão dos recursos entre os produtores e entregadores. Além disso, ainda investiu na divulgação pelas redes sociais.
Outro exemplo é o grupo de consumo consciente Livres, de Santos, que é gerenciado por 12 cooperados e mais quatro trabalhadores associados, que têm entre si proximidade de propósitos.
Nesta cidade, 120 consumidores organizados adquirem produtos orgânicos de cinco associações de diferentes territórios, distantes pelo menos 150 km de Santos. As sacolas de acondicionamento dos produtos são feitas por um coletivo de mulheres denominado Charlotte, que integra outro território situado a 55 km da sede do Livres.
Além disso, há agricultores familiares que estão em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul que também são fornecedores. Assim, observa-se que a proximidade geográfica não é um fator determinante para colocar em relação produtores e consumidores.
No entanto, considerando a sede do Livres e os locais de residência dos consumidores, há proximidade geográfica, havendo uma eficiente gestão exercida pelo núcleo de organizadores do Livres, que aproxima os produtores e os consumidores com a adoção de planilha aberta.
Os consumidores do Livres têm a opção de pegar a cesta de alimentos na sede ou receber em casa. Há oito entregadores das cestas de produtos para os consumidores que trabalham de forma cooperada e não explorada por um dono de aplicativo.
Esse modelo de entrega passou a ser referência para o movimento de entregadores, que luta contra a exploração. Trata-se, também, de proximidade de propósitos em uma rede mais ampla, representada pelo próprio Livres.
Esta experiência gerou também uma “pré-comunidade”, porta de entrada para a comunidade de consumidores conscientes, que já tem 70 interessados no ingresso ao projeto. Esses números podem levar o Livres a ligar produtores à mesa de cerca de 200 famílias ainda em 2020.
Essa organização possibilita que os produtores associados programem a produção, de acordo com a demanda dos consumidores.
A reciprocidade é observada entre os diferentes segmentos que integram a rede e no interior de cada um. Considerando o fato de se tratar de produtos orgânicos e agroecológicos, há reciprocidade também com o meio ambiente, visto que não se utiliza agrotóxicos.
A organização do Livres é iniciada por um pequeno grupo de pessoas que tinham entre si proximidade de propósitos, seu núcleo gestor. O objetivo era a construção de uma rede de agentes que proporcionasse aos consumidores o acesso a alimentos livres de agrotóxicos e de relações de exploração.
Posteriormente, a sua ampliação se deu pelo interesse de consumidores em adquirir produtos orgânicos motivados pela proximidade geográfica com a sede do grupo, facilidade de acesso devido às entregas e confiança quanto à qualidade do produto.
No entanto, as sucessivas atividades culturais do Livres, que combinam lazer e formação concernente às relações sociais e aspectos que envolvem as cadeias produtivas clássicas, capitalistas, expandiram a proximidade de propósitos, que atualmente é a principal proximidade motivadora da organização.
A experiência do município de Itanhaém evidencia que as atividades concernentes à economia solidária estão ancoradas na Associação dos Produtores Rurais da Microbacia Hidrográfica do Rio Branco, Pescadores Artesanais, Aquicultores e Indígenas de Itanhaém e Região (AMIBRA) que, junto com a prefeitura, que possui um Banco de Alimentos, e um corpo técnico de extensionistas, ativam as proximidades geográfica, institucional, organizacional e de propósitos.
Assim, a economia solidária emergiu no município com diferentes ações, como a comercialização na Feira do Produtor, a organização para atender aos programas de compra direta do governo federal, a construção de uma Organização de Controle Social com produtores de orgânicos e, mais recentemente, a criação de uma barraca coletiva com produtos de nove agricultores familiares para comercialização no sistema drive-thru.
Além disso, também durante a pandemia, a prefeitura comprou dos agricultores familiares do município 37 toneladas de alimentos que não seriam comercializados devido ao afastamento social, para distribuição às famílias do município em situação de vulnerabilidade.
Essa ação da prefeitura demonstra que a solidariedade em forma de reciprocidade multilateral não deve se limitar a produtores, fornecedores, prestadores de serviços e consumidores, mas também deve incluir o poder público por meio de políticas e ações para a fortalecimento da economia solidária e promoção do desenvolvimento local.
Pode-se incluir, também, dentre as ações determinantes a emissão de documentos para a legalização dos agricultores familiares para que pudessem acessar os programas governamentais. Este fator também é de grande importância em Peruíbe.
Como resultado comum nas experiências de Peruíbe, Itanhaém e do Livres em Santos está o sentimento de valorização de cada participante, com troca de saberes e reciprocidade.
A economia é resultado de relações de cooperação e não competição.
Pode-se concluir que as proximidades cultural, geográfica, institucional e organizacional, caso ativadas, podem viabilizar a economia de proximidade. No entanto, a economia solidária somente pode ser construída se houver proximidade de propósitos entre os diferentes agentes das cadeias de produção.
É possível criar proximidades culturais, geográficas, institucionais e organizacionais no atual sistema, mas tudo isso só pode se unir num projeto de transição para outro tipo de economia se houver convergência de interesses entre os agentes. Ou seja, somente se o quadro de interesse comum for a construção de uma economia de fato solidária.
O pesquisador inglês Les Levidow, da Open University, integrante do Projeto Agroecos, nos lançou a seguinte questão: Quais são as capacidades coletivas de uma determinada comunidade para criar soluções para os problemas que enfrentam e construir cadeias curtas de comercialização fundamentadas na economia solidária?
Pode-se afirmar que este aspecto tem relação com a ativação das proximidades, o fortalecimento ou a criação da proximidade de propósitos, que pode se dar por meio de atividades de formação e nas relações cotidianas de apoio mútuo, a implementação de políticas públicas pelas prefeituras, em parceria com as organizações representativas da sociedade, a formação dos diferentes agentes de produção e comercialização para serem atores sociais e não somente agentes em uma cadeia de produção e comercialização e a criação de redes sociotécnicas que viabilizem os projetos, ou seja, espaços de cooperação.
Ressalte-se, porém, a importância dos atores que desempenham o papel de colocar as pessoas em relação para criar o quadro de interesse comum.
*Newton José Rodrigues da Silva, Juanita Trigo Nasser, Guilherme Prado e Thais Maria Muraro da Silva são integrantes do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista