Tiros, pedaços de gesso arremessados, janelas quebradas, ameaças de morte, insegurança, medo. Parece até cenário de guerra, mas foi o que o Santos precisou enfrentar na chegada ao estádio Gigante de Arroyito, em Rosário, para vencer o time da casa, o Rosário Central, e conquistar a edição de 1998 da Copa Conmebol. Foi o primeiro título internacional pós-Era Pelé.
A última vez tinha sido contra a Internazionale, em 1969. Pela Recopa Mundial Interclubes, no San Siro, em Milão, Itália, o Alvinegro da Vila Belmiro venceu por 1 a 0, com gol de Toninho.
Como o Santos chegou até lá?
Campeão do Torneio Rio-São Paulo, em 1997, sob o comando de Vanderlei Luxemburgo. Foi assim que o Santos garantiu sua vaga na edição da Copa Conmebol. Num período de “vacas magras”, com contenção de gastos por parte do presidente da época, Samir Abdul-Hak, o clube enfrentava uma “seca” de 14 anos de títulos, desde a conquista do Paulistão de 1984.
A pressão por boas campanhas era enorme. Com a saída de Luxemburgo, que se transferiu para o rival Corinthians, Emerson Leão assumiu o comando técnico da equipe para o ano de 1998.
O que era a Copa Conmebol?
Criado em 1992 pela própria Confederação Sul-americana de futebol (Conmebool), o torneio surgiu para dar calendário aos clubes no segundo semestre da temporada. Em questão de relevância, ficava atrás da Libertadores e da Supercopa Libertadores.
Em oito anos de história, cinco clubes brasileiros a venceram: Atlético Mineiro (1992), Botafogo (1993); São Paulo (1994); Atlético Mineiro (1997); e o próprio Santos (1998).
Destaque para o CSA, de Alagoas, que foi vice-campeão, em 1999, ao perder para o Talleres, de Córdoba, da Argentina, por 3 a 0 na final. Na ida, em Maceió, Alagoas, o jogo terminou 4 a 2 para o clube alagoano.
Classificavam-se para o campeonato, equipes que terminassem em posições secundárias nos campeonatos nacionais ou por meio de copas nacionais. No Brasil, era comum ver campeões das Copas do Nordeste, Norte e Rio-São Paulo serem convidados a disputar a competição.
O caminho para a final
A edição de 1998 reuniu 16 equipes em quatro fases eliminatórias (oitavas, quartas, semifinais e final), sempre em jogos de ida e volta. Nas oitavas, o Santos derrotou o Once Caldas, da Colômbia. Na ida, na Vila Belmiro, vitória por 2 a 1. Em Manizales, na Colômbia, derrota por 2 a 1, mas o Peixe se saiu vitorioso nos pênaltis: 3 a 2 e vaga na fase seguinte.
Contra a LDU de Quito, do Equador, foram uma vitória e um empate. Como visitante, empate por 2 a 2 na altitude de Quito. Na Vila Belmiro, vitória por 3 a 0, com dois gols de Viola.
Sem alardeio, o Peixe já estava nas semifinais para enfrentar um rival incomum em competições internacionais: o Sampaio Corrêa, do Maranhão. Campeão da Copa Norte do mesmo ano, os maranhenses seguraram o 0 a 0 na cidade de Santos. Porém, no abarrotado Estádio do Castelão, em São Luís, não teve quem segurasse o time de Emerson Leão: 5 a 1 para o Santos e vaga inédita na final da Copa Conmebol.
A primeira “batalha”
Santos, Vila Belmiro, dia 7 de outubro de 1998. O estádio estava lotado para ver o Alvinegro de volta numa final de um torneio internacional. O clima de tensão que a delegação santista enfrentaria em Rosário já pôde ser percebido no duelo de ida. Em jogo de seis expulsões, três de cada lado, o Santos bateu por 1 a 0 o Rosário Central, com gol de cabeça de Claudiomiro, aos 28 minutos do primeiro tempo.
A equipe argentina teve três atletas expulsos: Scotto, Carracedo e Montoya Rosário, todos por faltas duras nos adversários do Peixe. Três comandados de Emerson Leão também receberam o cartão vermelho: o atacante Viola, o zagueiro Jean e o próprio técnico Leão. Saldo da primeira batalha: seis expulsões e vantagem do empate para o Santos.
Enfim, a “Batalha de Rosário”
Dos 25 jogadores inscritos para o torneio, apenas 16 estavam em condições de jogo e três deles como goleiros. Do grupo inicial, quatro foram negociados durante a competição (Baez, Fumagalli, Dutra e Ronaldo Marconato), três estavam contundidos (Argel, Jorginho e Lúcio) e dois estavam suspensos (Jean e Viola). Com nove desfalques, seja por lesão, expulsão ou negociação, o Santos foi a campo com os 11 jogadores titulares e apenas cinco suplentes.
Suspenso por seis jogos pela Conmebol, por ser acusado de tentar agredir o árbitro José Luis da Rosa no duelo de ida, Leão pegou seis jogos sem poder comandar a equipe na beira do campo. Porém, com o clima hostil criado pelos argentinos, a entidade sul-americana retirou a punição e liberou o técnico, antes do jogo.
Segundo o site Acervo Santos, o perdão da Conmebol se deu pela falta de garantia de segurança para o treinador, caso ele acompanhasse o jogo das tribunas do estádio Gigante de Arroyito.
Operação “militar”
O Santos preparou uma operação de guerra para o duelo contra o Rosário. Com viagem para Buenos Aires programada para um dia antes do jogo, Leão não autorizou que se divulgasse a escala dos hotéis em que o elenco descansaria, antes de seguir para a cidade argentina. Além disso, ele não queria prejudicar o descanso dos atletas com o foguetório na portal do hotel preparado pela torcida rival. Uma equipe de 20 seguranças foi contratada para evitar qualquer agressão contra os jogadores na chegada ao estádio.
Como forma de evitar hostilidades, Leão abriu mão do reconhecimento do gramado, ao qual teria acesso, conforme as regras da Conmebol.
A escalação do árbitro paraguaio Ubaldo Aquino também foi outro ponto desanimador para os santistas, pois foi o mesmo que assinalou um pênalti duvidoso contra o São Paulo, no duelo diante do River Plate, pela decisão da Supercopa da Libertadores, em 1997.
A chegada ao estádio
Autor do único gol da decisão, o zagueiro Claudiomiro não se esquece da recepção. “Só quem esteve lá para ver. Nós chegamos ao estádio do Rosário com pedras, tiro pra tudo que é lado, descemos do ônibus escoltados. Estilhaços de bala pegaram em alguns integrantes da comissão. O negócio foi tenso”, relembrou Claudiomiro, em entrevista ao Folha Santista.
O lateral Baiano também não apaga da memória as cenas daquele dia. “O problema foi quando chegamos ao estádio. Clima muito hostil. As bombas, vidro do ônibus sendo quebrado, foi uma situação complicada. (Teve) questão de nos impedir de aquecer no campo. Nós, os mais jovens, estávamos muito nervosos, Adiel, Eduardo Marques, eu, com toda a situação”, detalhou Baiano ao Folha.
O jogo
Alegando falta de segurança, ainda no vestiário, o técnico Leão não queria entrar em campo. Temia pela vida de seus jogadores, pediu para voltar ao aeroporto “e nem passar no hotel para pegar nossas coisas”, disse Claudiomiro.
Na preparação para o jogo, o presidente do Santos, Samir Abdul-Hak, o presidente do Rosário Central, a polícia local e membros da Conmebol entraram no vestiário do Peixe e garantiram a segurança dos atletas dentro do estádio. Só assim Leão se acalmou e mudou de ideia.
Aquecidos, os atletas foram a campo e, com 40 minutos de atraso, começou o jogo. “A gente não podia entregar o título de bandeja pros caras”, comentou o ex-defensor santista.
Em campo, o Santos não se intimidou e conseguiu ser agressivo na marcação. Porém, o time de Rosário criou as três melhorou oportunidades no primeiro tempo, mas pararam no experiente goleiro Zetti.
“Lembro que no intervalo, nós falávamos: ‘olha, nós vamos vencer, vamos ser campeões, imagina a festa que vai ser lá em Santos, com o título internacional, para a carreira de vocês, pelos mais jovens’. Realmente, contra tudo e contra todos, nós conseguimos o título”, contou o santista.
Na volta do intervalo, a equipe de Rosário tentava criar chances de gol, no entanto esbarrava na falta de criatividade. Depois de quatro situações de brigas entre argentinos e brasileiros em campo, o santista Eduardo Marques e o argentino Daniele foram expulsos. O jogo terminou sem gols e o título veio para a baixada.
E o fim
Com o fim do jogo, os jogadores santistas mal tiveram tempo de comemorar o título, com medo de que os torcedores argentinos invadissem o campo. Por ordem dos seguranças contratados pelo clube, os atletas prontamente voltaram ao ônibus.
“Graças a Deus conseguimos o título lá dentro. Depois do jogo, eles queriam briga com o Narciso. Mas, a gente combinou com todo mundo que, ao final do jogo, corria pro meio campo e a polícia e os nossos seguranças fariam um cerco para proteger a gente”, lembrou Claudiomiro. “Nós ficamos em volta deles e, confesso, que eles sofreram mais do que qualquer atleta que estava ali. Foi uma experiência única que nunca voltei a viver na minha carreira como atleta profissional”, acrescentou Baiano.
A chegada a Santos não poderia ser melhor. As luzes vermelhas dos sinalizadores, dessa vez, indicavam festa e não o terror que viveram na Argentina. O troféu foi muito celebrado pelos santistas, mas não deu fim ao jejum de títulos nacionais, que só viria a acabar em 2002, com a inesquecível conquista do Brasileirão sobre o Corinthians, na vitória por 3 a 2, com o mesmo Leão no comando técnico. Essa história fica para outro dia.