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Algo mudou na noite santista. Neste ponto, músicos, empresários e gestores públicos concordam. A controvérsia começa na mudança propriamente dita. Alguns acham que foi para melhor. Outros para muito pior. Muitos, no entanto, nem uma coisa nem outra.

O fato inegável é que, ao contrário das décadas de 70, 80 e 90, quando a cidade fervia durante a noite inteira, de uns anos pra cá, as casas passaram a fechar mais cedo, os restaurantes já não viram mais a madrugada e os músicos passaram a tocar em horários alternativos, que chegam no máximo até à uma da manhã.

Estas transformações, e nisso todos concordam, são decorrentes da crise econômica, mas também da criminalidade e da falta de profissionalismo de bares e afins, outro ponto polêmico apontado por músicos e empresários.

Muitos dos novos espaços são exíguos e não foram feitos propriamente para música ao vivo. Vendo nela um atrativo a mais, proprietários colocam músicos tocando de maneira inadequada em um canto qualquer, com o próprio equipamento e acompanhados apenas por um violão e, no máximo, a percussão.

O dono do Torto

Michel Pereira. Foto: Divulgação

Este fenômeno foi apontado, entre outros, pelo músico, produtor e empresário Michel Pereira. Ele já foi dono do Torto, o lendário bar no Canal 4, que fechou há quase três anos e também do Bar do 3. De maneira otimista, ele acredita que as coisas mudaram, mas não necessariamente para pior. “Eu não acho que diminuiu o número de casas da década de 90 pra cá. Mudou o modelo. Antigamente as casas eram maiores, com palcos maiores e capacidade para apresentação de bandas. Hoje mudou, e eu acho que isso se deve à recessão e à mudança de hábitos. O que temos hoje são casas com propostas mais aconchegantes, com voz e violão. E esses estabelecimentos são hoje mais visados pela fiscalização. Até porque, de modo geral, não se prepararam pra esse tipo de atividade”, diz.

Michel acha que “parte disso é falta de preparo do empresário pra oferecer a música ao vivo, tanto com relação ao isolamento acústico quanto o equipamento que oferecem ao músico. E a maioria acaba fazendo isso apenas depois que é obrigado pela fiscalização”. Mas ele não deixa de ressaltar “ser óbvio que existe também uma certa intolerância dos vizinhos, isso não é novidade alguma”.

A voz da noite santista

Quem concorda com Michel é o conhecido cantor João Maria. Apesar de um tanto mais catastrófico, ele segue na mesma direção e também aponta o fenômeno das casas pequenas, onde as bandas não têm mais vez. Para ele, “mudou tudo. A música ao vivo está sendo dizimada na cidade. E isso é culpa de todo mundo. Dos músicos, dos donos de bares que não se adequam, não colocam proteção acústica. ‘Ah, tem uma tomada ali, coloca os caras pra tocar lá’, eles dizem”.

Fernando Rebello e João Maria. Foto: Divulgação

João ressalta que os cachês pouco mudaram nos últimos anos. “Os caras pagam o mesmo cachê de quando o Torto fechou, há quase três anos. Hoje em dia, eles estão enxugando. Baixista é uma espécie em extinção. Vai o guitarrista tocando violão e o baterista na percussão”.

‘Dá pra tocar mais baixo, que a gente quer conversar?’

Rogério Baraquet. Foto: Divulgação

O cantor e compositor Rogério Baraquet, líder do Bailão do Santo, concorda com Michel. “Eu acho que tem mais casas, mas a tendência é pra um lance mais acústico. Antigamente tinham as bandas, tinham menos casas, agora tem mais, mas menos músicos. Eu acho que isso se deu por causa do barulho. A cidade está ficando cada vez mais pra gente mais velha. O pessoal se aposenta em São Paulo e vem morar em Santos.”

Rogério, assim como João, diz que isso se dá também por conta da questão financeira, mas não só isso. “Menos músicos é menos custo pras casas. Mas isto se dá também pela falta de valorização da música. As pessoas não querem pagar couvert artístico.”

Neste momento, Rogério repetiu uma mesma história contada por João Maria: “Muita gente chega e diz: ‘dá pra tocar mais baixo, que a gente quer conversar?’. Quem já viajou sabe a diferença que é dada pra arte lá e aqui, né?”, desabafa.

Bar não é sexta básica

O músico Fernando Rebello, por sua vez, lembra que “o bar não é cesta básica, ele é supérfluo. Hoje a gente tem recessão. Se você quiser tocar, você tem que se sujeitar a ganhar pouco. A economia encolheu, tem menos bares. A rua do Comércio, em Santos, era cheia de bares e a prefeitura exterminou a atividade econômica por lá”.

Rebello não considera que a lei do silêncio seja problema. “A gente pode tocar antes das 22h, na hora do almoço, na feijoada. O problema não é esse. É a circulação de grana e a colaboração ou não do poder público”, afirma.

A prefeitura também é fiscalizada. Por ela própria

As dificuldades para implantação de eventos com música ao vivo não se limitam apenas aos músicos, empresários e donos de casas noturnas. De acordo com Vinícius Cesar Sérgio, chefe do Departamento de Eventos da secretaria de Cultura de Santos, a prefeitura, muitas vezes, também é obrigada a fiscalizar a si própria. “Temos muitas dificuldades. As tendas, por exemplo, foram focos de questionamentos por parte de um morador. A prefeitura teve que se adequar, se autofiscalizar, assim como qualquer um.”

Vinícius Cesar Sérgio. Foto: Facebook

Vinícius faz questão de ressaltar que a grande maioria, no entanto, apoia os eventos. “Nós tentamos levar pro centro, para lugares menos habitados, mas não tem jeito. Até no carnaval você tem reclamação de moradores.”

Arregaçar as mangas

A cantora Monna, que é da nova geração, também percebeu a mudança e se lembra do auge do Galeria, do Torto e do Alegra, bares que contavam com várias bandas. “Era uma cena noturna da madrugada, que não tem mais. Não existem mais casas noturnas, com estrutura para bandas poderem tocar”, lamenta.

Monna. Foto: Divulgação

Por outro lado, Monna aponta um novo fenômeno na cidade em decorrência do fechamento dos bares. “Várias pessoas apaixonadas pela cultura abriram espaços dentro das suas casas, dos seus quintais. Como exemplo a gente tem o Saruê, Bangalô, Casa Velha, Quintal da Veia. Esses espaços me deram a possibilidade da parceria. Então eu virei produtora. Vou lá e proponho os meus próprios eventos, shows, especiais. Eu acho que isso é uma coisa muito legal. Por outro lado, aqueles que me acompanhavam, há dez anos, envelheceram e estão em outra dinâmica, com filhos. Hoje, com essa possibilidade da música começar mais cedo, eles vêm e falam: ‘ainda bem que você está cantando nesse horário, é bom pra curtir’.”

Uma cidade de gente velha

Ao ser perguntada sobre a situação da noite em Santos, Giovana Razuk respondeu com uma sonora risada. “Está cada vez mais restrito o trabalho com música, com cada vez menos lugares e os que existem não têm estrutura nem equipamento.” Sem papas na língua, Giovana afirma que Santos virou uma cidade de gente velha. “Na Esquina do Chopp, que é em frente à praia, do lado do canal 3, às 23h tem polícia na porta por causa da música, do barulho, gente reclamando. Isso fechou vários lugares da cidade. Se não fossem os meus alunos e os eventos que eu faço, não sei como seria”, desabafa.

Simone Ancelmo. Foto: Divulgação

Fui

Simone Ancelmo faz coro com Giovana. Ela foi embora. A cantora está em Paraty desde dezembro, mas de vez em quando vem por Santos. “A situação ai é desanimadora, né?”, questiona. “Santos tem muitos talentos, mas a administração não abre espaços para agregar esses talentos. Falta interesse na cultura. Não é uma coisa só de Santos, mas é assim. Sou muito grata por tudo que conquistei, o meu público, mas estou bem aqui”, conta.

O Rei da Noite

Eduardo Caldeira. Foto: Facebook

Eduardo Caldeira é uma lenda na cidade. Foi dono de alguns dos bares mais inovadores, que sempre primaram pela boa música, comida e, é claro, companhia. O Reciclagem foi o primeiro deles. Depois disso, o Bar da Praia e, finalmente, no início dos anos 2000, o Barnabé. Todos com bandas.

No Bar da Praia se apresentaram artistas famosos, como Johnny Alf – que homenageou o bar com uma canção – Dori Caymmi, Lenny Andrade entre muitos outros, além de atrações que Eduardo trazia de fora e também músicos da região. O fato de músicos de jazz que faziam o circuito da capital se apresentarem por aqui fez com que o nível da música e dos músicos da cidade também se elevasse.

Eduardo está afastado desde então. Diz que às 23h já está na cama. “Me aposentei da noite antes que a noite me aposentasse”, diz ele. De qualquer maneira, ele acha que a noite continua sempre um fascínio. “A noite o gerente de banco não te cobra, o juiz não despacha, é tudo muito mais tranquilo. A noite as pessoas escancaram a alma e se mostram.”

Com relação aos bares passarem a funcionar do final da tarde até o começo da noite, Eduardo diz que isso é uma tendência que veio da Europa. “Aqui como todo bom macaco de imitação, todo mundo entrou nessa onda.”

No final das contas, Eduardo diz que acabou de ler a biografia de Maurício de Souza. “Ele afirma que os personagens dele estão vivos porque sempre foram atualizados. A noite é a mesma coisa. Tem que ser atualizada”, encerra, sem críticas nem elogios.