O antigo Mercado de Peixes - Foto: Carlos Pimentel Mendes/Novo Milênio

Mercado de Peixes, na Ponta da Praia, em Santos, completa 40 anos neste domingo (16). Para marcar sua importância histórica, o cineasta Petruccio Araujo realizou o curta-metragem “Garça Que Te Quero Peixe”, lançado em 7 de janeiro. A produção aborda a triste demolição de um dos principais pontos turísticos da cidade.

O curta mostra o antigo Mercado de Peixes e o apresenta como uma referência cultural, histórica e arquitetônica. “Sua demolição quebrou um elo na história do município e se configurou como uma perda irreparável da arquitetura de qualidade produzida nas décadas de 70 e 80”, conta Petruccio.

Com pouco mais de 18 minutos, o curta mostra depoimentos de comerciantes do local e de representantes da prefeitura de Santos, além de imagens da pesca, venda dos peixes e a tradicional presença das garças no antigo mercado.

“A demolição do antigo edifício deixou um vazio na Praça Gago Coutinho. Em seu lugar, teremos uma estação do VLT, e, quanto às garças que embelezavam o edifício, elas também desapareceram do lugar para serem literalmente barradas no baile”, afirma Daniela Quintas, filha do arquiteto do antigo projeto, Antônio Carlos Quintas.

Petruccio Araujo tem formação em filosofia, é cineasta, jornalista, escritor, com trabalhos em televisão, em veículos como TV Tupi, TV Cultura, TV Globo, TV Bandeirantes, TV Escola, NHK NEWS (Japão), além dos Diários Associados, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, entre outros. Além de atuar na produção audiovisual, também desenvolve trabalhos no teatro.

Folha Santista: O que o motivou a realizar o curta e qual a inspiração para o título “Garça Que Te Quero Peixe” ?
Petruccio Araujo:
Minha motivação pelo patrimônio histórico nasceu quando vim morar em Praia Grande. Foi a vinda de São Paulo para a Baixada que me levou a contatar patrimônios históricos, começando pela Fortaleza de Itaipu, marco urbano do município. Na verdade, a minha militância no cinema como autor começou em 2015, quando realizei um filme sobre as fortalezas da Baixada Santista. Em seguida, nesse mesmo ano, fiz a codireção, o roteiro e a fotografia de um documentário sobre a Cidade Ocian, aqui em Praia Grande. Nesse filme, uma coisa interessante aconteceu: nas entrevistas um signo se fazia presente: a Caixa D’agua! Eu não perguntava nada sobre a Caixa D’agua e da memória dessas pessoas surgia a indignação pela demolição desse marco urbano em Praia Grande. Durante as filmagens, o prefeito me pediu desculpas por ter derrubado o patrimônio histórico. Como vê, já estou motivado há algum tempo. Quanto à inspiração para o título, a mais remota vem do poema que li aos 14 anos de um poeta cigano da literatura espanhola que foi fuzilado pelos fascistas de Franco. Esse poeta é Federico García Lorca. Depois de 60 anos uma estrofe do poema de Lorca me inspira: “Verde que te quero verde Verde vento. Verdes ramas. O barco vai sobre o mar…”. Este poema é um poema do autossustento. O poeta fala da natureza e o brilho de prata fria da lua gitana em nossos olhos mirados pelas coisas. As garças e o Mercado de Peixes se sustentavam; as garças e o mercado do arquiteto nos miravam; a relação espacial do projeto do Quintas (Antonio Carlos) integrava o edifício com o entorno, ao contrário do “shopping” atual, onde as “garças foram barradas no baile”, como afirmou Daniela Quintas (filha do arquiteto).

Folha Santista: Qual sua avaliação sobre a demolição do imóvel histórico para colocar o Mercado de Peixes nessa nova configuração?
Petruccio:
Quando me convidam a falar, eu digo sempre a mesma coisa: eu faço filmes para aprender e compreender melhor os fatos que estou capturando pela câmera. Claro que quando começo um projeto eu tenho um esboço sobre o que vou ou não encontrar lá na frente. Trabalho um filme como uma obra aberta. Submeto-me ao tempo e à recepção da obra. O tempo da captação das imagens é um inimigo ou um amigo promissor: o tempo, todo o tempo, afirma ou nega a proposta inicial do autor, ou do diretor. A prática tem ensinado que somente depois da montagem do filme é que apreendo melhor o que produzi. Quanto à recepção do trabalho, ao tratar de um tema obvio de demolição de patrimônio histórico nas cidades, eu não imaginei que falaria sobre o curta na imprensa. Não sou arquiteto, não sou urbanista, minha formação é filosofia, mas creio que “patrimônio histórico” não deve ser demolido; patrimônio histórico tem que ser reaproveitado, requalificado. O poder público deveria atribuir novas funções ao patrimônio, isso devido à história afetiva ou aos valores agregados pela comunidade, do entorno à edificação, ao longo de sua existência. Não podemos negar a memória que compõe a imaterialidade do patrimônio histórico. Quanto à nova configuração do mercado, sabemos que ela atende à voga do “planejamento estratégico”, que visa revitalizar áreas degradadas, principalmente áreas lindeiras a portos. Esse movimento de reconfiguração dessas áreas serve à produção espacial do capital, principalmente, do capital imobiliário que tem como contrapartida a outorga onerosa – esse tema está presente no longa que estou montando, o “Cochrane, 144”, sobre a revitalização do centro de Santos e o impacto nas comunidades da Bacia do Mercado que lutam por moradia. Mas o capital imobiliário não está sozinho nessa empreitada. No mundo todo, depois dos anos 60, a indústria cultural tem servido de âncora a projetos de revitalização das áreas degradadas. Nessas áreas, comunidades inteiras vivem sob promessas de emprego e projetos habitacionais, enquanto são gentrificadas. A nova configuração ou forma arquitetônica do novo mercado não dialoga com o entorno. O novo visual do novo mercado da nova Ponta da Praia serve à sociedade do espetáculo: a beleza da paisagem urbana iluminada. Com o tempo esse espetáculo se banaliza e perde o encanto. Eu estive na praça à noite: árida, porém, de imediato, agradável aos olhos.

Folha Santista: Como você observa essa e outras agressões ao patrimônio histórico, cultural e arquitetônico, muito comuns em Santos?
Petruccio:
O curta fala da demolição de outros patrimônios, como o Clube XV e o Parque Balneário. Velasco nos fala da desinformação das gerações quanto à demolição desses patrimônios. Cristina Ribas nos fala da alternância do construir e destruir própria da “cultura predadora”. Por outro lado, se atentarmos bem à fala do gestor do projeto Nova Ponta da Praia, o jovem arquiteto e urbanista Glaucus Farinello, daqui a 40 anos, outro gestor, a serviço do tal planejamento estratégico neoliberal ainda em vigor, demolirá com uma só canetada o atual Mercado de eixe. Hoje em dia, um patrimônio histórico dura pouco. Quando entrevisto eu sempre pergunto ao arquiteto ou professor universitário se “essa discussão passa pela sala de aula”. Tenho interesse em saber como a academia reage às agressões ao patrimônio histórico. No curta, eu faço essa pergunta e a professora arquiteta responde que sim, que a questão levantada passa pela sala de aula, mas que falta aos futuros arquitetos uma consciência. Aqui cabe mais uma pergunta: quem constrói a consciência na cabeça do aluno? Sei que minha abordagem do tema é política. Pois acredito que num primeiro momento devemos responsabilizar o poder público pelas agressões ao patrimônio histórico. Porém, creio também que não somos suficientemente organizados politicamente a ponto de impedir a tragédia desses patrimônios todas as vezes que são ameaçados. Em defesa do Mercado de Peixes, arquitetos liderados por Daniela Quintas reagiram com o pedido de tombamento da edificação e não foram atendidos em suas reivindicações. Depois, melancolicamente, demos um abraço de despedida no patrimônio histórico. A verdade é que não temos força política para a mobilização da sociedade e dos vereadores do município para impedir “a morte anunciada” do patrimônio histórico.Se temos um plano diretor, por que ficamos à mercê do “planejamento estratégico?”.

Assista ao curta de Petruccio Araujo: