Por Jaqueline Fernández Alves*
Uma obra importante para o conhecimento histórico e a crítica que se faz quando tratamos da evolução urbana das cidades foi lançada em 1983. Escrita por Benedito Lima de Toledo, “São Paulo em Três Séculos” é leitura obrigatória nos bancos dos cursos de arquitetura e urbanismo. Entender como se deu esse processo é importante por um aspecto contundente, que é a construção e a destruição da mesma cidade, no caso São Paulo, por três vezes em um período de 100 anos. A mudança é tão devastadora que é possível, no espaço que dura uma vida humana, apagar tudo o que ocorreu na geração anterior.
Assim, os estudos que versam sobre a história desse processo de construção da cidade, de taipa, que é substituída pela cidade industrializada e que, por sua vez, é devastada pela cidade dos novos negócios, acabam sendo primordiais para que tudo não acabe em esquecimento. Com uma sociedade que não se identifica com a própria memória, o brasileiro se contenta com o resultado equivocado, ditado pelas especulações do território em que vive.
Preocupados com esse processo de destruição, muitos gestores públicos e a iniciativa privada realizaram no Brasil vários programas de revitalização a partir da década de 1990, com o intuito de recuperar a imagem urbana das cidades. O Centro Histórico de Santos não esteve alijado desse processo. Com um patrimônio colonial importante, tombado pelo IPHAN e CONDEPHAAT, e um núcleo urbano remanescente do ciclo econômico do café que o tornava um dos centros históricos mais importantes do pais, ganhou de presente no início do século XXI um Programa de Revitalização intitulado Alegra Centro.
O projeto foi baseado no que havia de mais contemporâneo naquele momento – a cidade espanhola de Barcelona foi a inspiração em função do que estava sendo levado a cabo por lá – o programa Barcelona Posat Guapa. Iniciado no final dos anos 1980, esteve por mais de 20 anos revitalizando e protegendo os edifícios antigos do início do século XX, além de cuidar da melhoria da qualidade de vida e da paisagem urbana daquela cidade.
Transformado em lei em 2003 o Alegra tinha como objetivos intervenções físicas e estruturais, incentivos fiscais, criação de atrações e de núcleos com incentivos aos comerciantes. A área para implantação desse programa era a já conhecida APC (área de proteção cultural) devidamente inscrita no Plano de Diretor desde 1998. Um inventário foi elaborado para declarar quais edifícios tinham relevância e graus de preservação indicados para que as reabilitações que fossem executadas pudessem receber corretamente o tratamento adequado.
As mudanças duraram o tempo do período de uma gestão municipal já que boa parte do Programa para que funcionasse precisava de constância na aplicação dos parâmetros e das ações que seriam responsabilidade do poder público. Mudou o prefeito, mudaram os interesses estratégicos e o Programa Alegra Centro como estratégia de requalificação urbana sucumbiu, a lei permaneceu e, recentemente, recebeu uma revisão para que pudesse ser menos restritiva e facilitasse as intervenções dos imóveis com níveis de preservação. A mais nova “repaginação” em um trecho da Rua XV de Novembro é a última pá de cal no extinto programa.
As constantes obras que estão sendo efetuadas no Centro Histórico, com o intuito de reabitar o lugar, trazem em si a destruição de muitos dos remanescentes históricos originais já que não se leva em conta o traçado da vila original, nem a leitura especializada antes das intervenções. A última revitalização de 2001 da Rua XV mudou o piso existente à época por paralelepípedos, porque a intenção era trazer de volta as características do calçamento que existia no período anterior e que remetia a Santos dos negócios do café. Da mesma forma a iluminação abundante, ainda que com a instalação de postes de época, acabou por atrair muita gente ao centro, eram as reformas estruturais que o Programa Alegra Centro queria instalar. A revitalização nesse momento corretamente enxergou o traçado da antiga vila, do Outeiro de Santa Catarina até o Valongo.
A “reforma” atual, de apenas um pedaço desse logradouro, trouxe novamente o sentimento da destruição e do discurso vago. Quando se abandonam elementos que são originais ou remanescentes por intervenções contemporâneas de época, a cidade vai perdendo seu valor.
O que acontece hoje com a Rua XV de novembro é um exemplo disso. Não se “altera” um pedaço de rua que faz parte de um conjunto urbano original preservado e com bens tombados dentro de áreas envoltórias e que minimamente deveria ter sido questionado pelo CONDEPASA. Intervenções dessa qualidade remetem ao que Benedito já escrevia no início dos anos 1980: as cidades vão se transformando e mutilando o território anterior. O novo pedaço de rua que se renova é realmente novo ou um resultado equivocado e desvirtuado do pouco que sobra?
Ninguém preserva aquilo que não reconhece.
*Jaqueline Fernández Alves é arquiteta e urbanista especializada em restauração do patrimônio histórico e cultural; doutoranda pelo programa de pós-graduação da Universidade São Judas Tadeu; professora universitária; conselheira do CAU/SP; conselheira do CONDEPHASV; gestora do coletivo Jornada Santista do Patrimônio Histórico; criadora do blog Santos Antiga @blog_santos_antiga.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.