“Vida, valeu.
Não te repetirei jamais!”
(Antonio Cicero).
José Francisco de Assis nasceu em um quatro de outubro, na cidade de Patos, no interior do estado da Paraíba. Passou a infância entre o sertão e o São João. Aprendeu desde cedo a cortar o cacto xiquexique em rodelas e espremer as suas fatias com a faca. Tudo isso para extrair um suco amarelo que o hidrataria se porventura ocorressem novos períodos de seca extrema, como no ano em que ele nasceu. Criatividade que só o sertão permitia.
Quando pequeno, ele ouvia com curiosidade as pregações de um peregrino maltrapilho que rondava a sua cidade predicando que o Deus do sertão era diferente do outro Deus Todo Poderoso. Enquanto Este último era o Pai Bondoso, o primeiro era o Impiedoso, o que fazia a experiência da vida na terra um tormento para a purificação da alma. O Deus Bondoso tinha o olhar voltado para o mar. Já o Pai Justiceiro endossava outros códigos da vida na caatinga, onde a vida humana é regida pelas privações. A seca, a sede, o calor, a fome. Uma fábrica de homens limítrofes.
Ao ouvir o ermitão sem-teto, José Francisco não entendia bem o que queriam dizer todas as palavras e o significado de seus pensamentos e reflexões. Mas era algo novo. E isso, por si só, o encantava. Pelo menos era bem diferente dos clichês lamuriosos que estava acostumado a ouvir de todos ao seu redor. Era um lugar-não comum.
A comunidade rejeitou o profeta pelas supostas falas heréticas sobre a doutrina vigente. Mas José Francisco não. Não lhe causava estranheza a excentricidade deste homem. Dessa proximidade surgiu uma efêmera e inesperada amizade permeada por um ambiente fraterno. Todas as tardes eles se sentavam embaixo de uma Umburana de cheiro que tinha perto da praça central e conversavam sobre tudo. A vocação do velho andarilho se sobrepunha nas pautas e conversavam predominantemente sobre histórias religiosas. Foi lá que o menino soube que o padroeiro que lhe inspirou o nome de batismo foi um soldado que, numa visão a caminho de uma guerra, voltaria a sua terra natal mudando radicalmente sua forma de viver declarando um voto de pobreza. Aquele homem de olhar vago, de barba comprida e grisalha também era devoto do mesmo santo e tinha o São Francisco de Assis como o herói de seus sonhos. Fazendo o esperado de um súdito, deu as costas para o mundo para viver em eremitérios. O pouco tempo de convívio foi mais do que suficiente para que José Francisco despisse de julgamentos praticando um exercício de liberdade e desapego. Era um menino mudado.
Passou a sua infância e adolescência transitando entre a rotina e a aventura, sendo esta última a responsável por sua mudança, aos dezenove anos, para Campina Grande após uma visita para festejar São João. Durante um evento no Parque do Povo ele se abriu à ousadia. Arriscou viver a experiência extrema do não-comum e não voltou para casa. Passou a morar na cidade grande sobrevivendo de bicos que lhe eram facilmente oferecidos graças à sua simpatia e coragem. Aceitava novos ofícios sem nem mesmo saber bem como fazer. Confiava na sua intuição. Aprendeu na caatinga que, em dias de sol a pino e valor, apenas acreditar bondade era o que restava. Precisava, então, despertar esta bondade nas pessoas. Vestiu sua camisa de brisa e deu adeus ao seu mal passadio. Aos poucos se tornou um personagem essencial para a comunidade. A transformação aconteceu naturalmente. Todos se acomodaram de um outro jeito com José Francisco junto.
Apesar dos bons laços de afeto, o espírito livre se desquietou e, mais uma vez, Francisco de Assis partiu. Dessa vez com a expectativa de uma vida diferente. Queria sentir-se radicalmente vivo. E suas sandálias se arrastaram por diversos estados e geografias do país. Parecia um explorador do Novo Mundo que, com seu calçado de brasileiro, atravessou o sertão, os vales e o mar. Se fixou no litoral do estado de São Paulo, encantado pela umidade da serra do mar e pela diversidade do mangue.
Depois de trabalhar em sítios de bananas perto de Piaçaguera, e no sítio de um inglês em São Vicente, por fim fez sua carreira nas Docas. Alojou-se no bairro do Macuco onde viveu por trinta anos numa casa de estuque construída por ele mesmo com os músculos conseguidos graças ao costume dos exercícios cotidianos. Após os dias de labuta sem fim, desembarcando trigo, vinho, carvão e ferro, ele percorria as ruas do cais até chegar no bar da dona Deolinda. Começou tomando uma dose de aguardente antes de dormir. Até que um dia precisou também desta dose para levantar.
Aos sessenta e seis anos adoeceu. Teve um grave acidente de trabalho que lesionou sua perna esquerda formando uma ferida que, graças ao diabetes, não cicatrizava. A lesão tuberosa tinha uma cor amarelada e um odor desagradável que não lhe deixava fazer segredo de sua condição. Parecia um ramo da planta catingueira esquecida após o período de chuva. Uma flor amarela que continha em seus ramos cactos com espinhos prontos para dilacerar. A flor que o deixou acamado e o privou da costumeira liberdade.
Estar preso em um leito de hospital fez dos dias de Zé Francisco imensos. Os segundos eram contados junto com as gotas do equipo de infusão de medicações. Inclusive as pausas. Havia sobra de tempo para tudo, até para o medo. Muitos dias ele tinha vontade de calçar os sapatos de brasileiro e sair por aí. Mas as pernas não respondiam. A vontade estava à mercê da inércia do corpo. Sua pele estava fina e seca como o chão sob os pés dos sertanejos. Assim como o solo, da sua pele se soltava uma poeira fina que sobrevoava o quarto. Recluso, sentia falta do mundo.
Um dia, após mais de um mês de internação sem melhoras, ouviu da equipe de saúde que havia poucas chances de sua ferida cicatrizar, assim como também era muito remota a probabilidade de ele voltar a andar. Seria recomendado que ele mudasse radicalmente seu modo de viver. Teria que ter uma rede de apoio para realizar curativos, alguém que cuidasse da sua casa, alguém que cuidasse dele. Enquanto a enfermeira dava essas instruções, começou mais um dos momentos difíceis do dia: o banho. Foi respeitosamente despido, meticulosamente ensaboado. Assim como em dias anteriores, chorou no momento da higiene pessoal. Mas desta vez não era somente a dor física que o lancinava, mas sim a tristeza da dependência. Ao final do banho estava perfumado e totalmente taciturno. Atordoado olhou para seus músculos esgarçados e chorou. Estava no limite do que entendia ser vida. Sua doença seguia um rumo irreversível e já não tinha esperanças de voltar a ser o homem que foi.
Passou a se agarrar à imaginação da vida como uma trepadeira no muro. Intercalava uma imaginação fértil com um realismo mágico. Saboreava o seu passado com a gula que o presente não poderia mais lhe oferecer. Sentia que a morte tinha passado por ele e lhe entregado a flor que o guiaria. Com ela, Francisco construiria um jardim com subespécies de coloração degradê, com as catingueiras e seu amarelo reluzente suavemente se desdobrando o até chegar na área das baraúnas tão vermelhas como na terra enriquecida após as chuvas. Um jardim de veredas que se bifurcaram em um novo Francisco. Um homem sem a armadura reluzente da simpatia que se deparava com a morte. Uma mudança não só na sua aparência física. Mas algo de maior profundidade.
Adormeceu…
– Olá, Francisco, sou a … sou a morte. Eu vim aqui para te oferecer o maior exercício de liberdade que alguém poderia experimentar. Sinta a potência…
Seu ronco pareceu aumentar…
– Você pode sobreviver. Mas, assim, você me conhece, eu preciso deixar uma marca. Você sobrevive! Mas preso numa cama!
Pausa na respiração…
– Tá, tá, tá. Eu deixo você se sentar com apoio. Mas não me peça mais nada do que isso! E pelo menos um curativo por dia nessa perna, no mínimo! É isso ou nada!
E José Francisco de Assis optou por voar.
Na queda livre sentiu que tinha asas e suas cinzas se espalharam pelo oceano, perderam-se de vista. Esse pássaro um dia havia de voar.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.