“Perdi-me dentro de mim porque eu era labirinto.
E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim”.
(Mário Sá-Carneiro).
Antônio Querino hoje mora na rua Bem Me Quer numa cidade litorânea do estado de São Paulo. Quem vê o octogenário sendo cuidado pelas filhas Josefa e Francisca se surpreende ao saber que eles se reencontraram há pouco tempo, pelo tanto de afeto que expressam. Mas tudo na vida tem uma história. Toda a dor tem uma história.
Conheci seu Querino, assim conhecido na ala da internação do hospital, sozinho e amarrado. Ele estava emagrecido, com os olhos fundos como poços secos à procura de alguma água potável. Apresentava um quadro de confusão mental devido à desidratação e por um tumor cerebral que afetava uma área responsável pelo comportamento social. Falava palavras desconexas. As poucas vezes em que o seu discurso era coerente ele chamava o que entendíamos ser o menino Dinho e dizia algo sobre “passarinhar com baladeiras”.
– Vamos lá, Dinho! Vamos antes que mãínha se desperte! A baladeira está tinindo e os passarinhos ainda voando raso na neblina da manhã!
No documento de identidade que carregava consigo víamos a foto de um homem de pele escura. Tinha os olhos âmbar e um sorriso de dentes grandes. Nascido em Pojuca, Bahia, em 30/04/1945. Filho de Raimundo e Margarida. Não sabíamos mais nada dele. Estava sendo cuidado pela equipe do hospital que pensava para onde ele iria depois de sua presumida melhora. Como mandar alguém para casa se nem sabemos se casa essa pessoa tem? E ninguém procurava por ele. Era uma ausência presente e absoluta.
Após exames e cuidados seu Antônio Querino voltou a ter períodos de lucidez. Nesses momentos dizia que tinha vindo da Bahia para o Sudeste atrás de sua família. Tinha dois irmãos e uma irmã morando aqui. Além de seus três filhos. Tinha uma esperança de sua esposa estar viva, apesar de seu coração dizer que não. A despeito de suas buscas, nunca encontrou ninguém. Ele sabia que tinham vindo para a Baixada Santista na década de noventa. Mas ele não imaginava que aqui era uma terra tão grande. Nem tão cinza. Fazia cerca de três anos que ele andava de cidade em cidade litorânea os procurando.
Ele morava ou nas construções em que ele trabalhava temporariamente ou em albergues. Nos períodos livres tentava alguma conexão com seu passado. Mas aos oitenta anos e com a sua saúde frágil não conseguia prover condições mínimas para manter sua dignidade. Ele mesmo não entendia como tudo tinha se desfeito. E parecia tão repentino. Como a vida pode despencar de penhascos. Começou a pensar se era melhor voltar pra Bahia. Ou não. Estava sem rumo. Tinha seus sonhos escorrendo pelos dedos das mãos. A única constante da sua vida era a mudança. E o serviço social da instituição trabalhava formas de auxiliá-lo para a reconstrução de seus projetos.
Até que três semanas depois internou no mesmo hospital um senhor chamado Raimundo. Idoso de 82 anos, vítima de atropelamento. Hospitalizou para corrigir uma fratura da perna direita. Ele se chamava Raimundo Querino. Nasceu em Pojuca. Filho de Raimundo e Margarida… Quem se deu conta da conexão das histórias foi o serviço social, graças ao inusual sobrenome. Sendo assim, de uma forma inesperada, a vida redimiu o destino. Abriu-se um mundo. Os dedos das mesmas mãos se fecharam com os restos dos sonhos que tinham lá dentro. E não abririam mais.
Raimundo Querino foi informado de que tinha um senhor chamado Antônio Querino internado dois andares abaixo do dele. A assistente social perguntou se ele reconhecia esse nome. Os olhos do Raimundo, que também eram esverdeados com tons dourados, logo se ergueram, com as sobrancelhas já embranquecidas.
O reencontro, como todos esperavam, foi digno de emoção. Mas a vida como ela é não se expressa sempre em beleza. Há muita dor nas quebras de vínculos. Muitos desentendimentos e violências não ditas. Apesar dos olhos dos irmãos serem semelhantes, os brilhos eram diferentes. Raimundinho, o Dinho, não acreditou na barba rala do irmão. Nem no seu rosto magro com olhos arregalados. O irmão mais velho tocou de leve na testa no caçula, como se qualquer toque mais pesado pudesse pressioná-lo a fugir novamente. Toda a diferença entre eles estava imposta. Raimundo se lembrava das noites em que procurava o irmão mais novo nos bares, ainda trôpego. Quantas vezes o levou para casa nos ombros. Achou que após Toinho conhecer a religiosa Celuta, viria dos céus assim como o nome da amada a solução para a dependência química. Mas isso não aconteceu. E Antônio Querino, o Toinho irmão do Dinho, se criou na dor. E não foi fácil para ninguém, em especial para quem estava perto.
Não é bom para a compreensão das complexidades do mundo e dividi-lo em bons e maus. Nada é tão simples. Mas as escolhas de Antônio Querino o levaram ao caminho da solidão. Talvez tenham tidos os hematomas que o afastaram de Celuta. Ou os gritos que deixaram Josefa assustada. Ou ainda a barriga vazia que fez Francisca e Osvaldo fugirem. O fato é que se você pergunta pra alguém: cadê sua família? Não tem uma sequer resposta possível que seja feliz. Alguns diriam “eles não me aguentaram”. Outros diriam “eles me abandonaram”. Ou “estão todos mortos”. Ou ainda “eu não tenho família”.
Mas, como diria a escritora e jornalista Eliane Brum, “memória é tanto lembrar, quanto esquecer”, e podemos enfrentar a memória como uma escolha. E a escolha de Raimundo foi lembrar do dia em que o irmão nasceu, quando o pai deles fez questão de celebrar uma missa na Paróquia Bom Jesus da Passagem, porque a gravidez de Margarida tinha sido de risco e a parteira disse que tinha muita chance da mãe e do bebê morrerem. Lembrava das manhãs em que eles caçavam passarinhos pelas matas de seu quintal. No embate das lembranças, optou pelo perdão. Quando tudo está sombrio é a bondade que nos resgata. A memória pode ser a história que reescrevemos a cada dia.
Então, Raimundinho acionou as sobrinhas. Infelizmente, a cunhada Celuta e o sobrinho Osvaldo tinham falecido. Mas Josefa e Francisca, que não viam o pai há pelo menos trinta anos, foram ao hospital para o reencontro. E logo ao chegar, Josefa, a irmã mais velha, saiu na frente ao perguntar:
– Pai, quanto tempo! Não imaginei que um dia fôssemos nos reencontrar! Como está sendo tudo isso para o senhor?! Como foram todos esses anos da sua vida?
Antônio Querino não esperava uma pergunta assim tão direta. Sorriu constrangido, envergonhado de seu passado. Mas essa pergunta inaugurou um novo mundo. Um mundo que nunca suportou as palavras. Um mundo do silêncio em que sentimentos e mágoas nunca foram claramente expressos.
– Minhas filhas, me perdoem.
E uma enxurrada de sentimentos vieram à tona. E as emoções molharam o lado de dentro, assim como uma tempestade faz com uma janela aberta. O vento nas cortinas encharca o piso. Mas nada é destruído. Na rua Bem Me Quer, um novo tempo se inicia. O sentimento de felicidade pode vir de um cheiro de chuva, do cheiro de um arroz fresco em cima do fogão ou ainda da luz do dia que cai sobre um canto da sala iluminando um quadro com uma frase do escritor manauara Thiago de Mello que diz:
“Artigo III do Estatuto do Homem:
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança”.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.