A vida nem sempre segue o roteiro que é planejado e não é apenas uma sequência de eventos, mas uma história com curvas delimitadas por momentos significativos. Meu pai morreu aos 31 anos deixando minha mãe viúva aos 26 anos com dois filhos, uma de três anos e um de um ano. Talvez por isso, quando muito jovem, eu pensava que aos 25 anos eu já teria atingido grande maturidade, tendo que construir algum projeto pessoal, a vida poderia também não esperar por mim. Pensava muito se sobreviveria à idade de morte do meu pai.
Aos 32 anos pensava: eu já vivi mais do que meu pai viveu. Quantas coisas meu pai deixou de viver por sua morte precoce… Ele não me viu fazer 4 anos, ele não viu meu irmão andar, não acompanhou os primeiros cabelos brancos de minha mãe, não viu o nascimento do seu sobrinho mais novo.
Mas ele já tinha tido a experiência de um casamento, experimentado a sensação do nascimento de dois filhos, viajado pelo mundo, subido em palcos, e tantas outras coisas que não tive a oportunidade de saber, por que sendo bem franca, não me lembro nem de sua voz. As memórias que tenho dele foram as contadas pela minha avó paterna, uma grande contadora de histórias, pela minha mãe e por tantas outras pessoas de seu círculo próximo. A memória recheada de afetos é sempre generosa. Até hoje esbarro com a história do meu pai narrada por outras pessoas.
Hoje, prestes a completar 40 anos, me pego ensimesmada. Ao mesmo tempo que me sinto jovem demais, com uma bagagem de sonhos realizados e outros tantos a realizar, olho para trás e já vejo um longo caminho percorrido, onde minhas escolhas juntamente com as tempestividades da vida já deixaram suas marcas em mim.
Nos meus oito anos de oncologia, me deparo muito com a morte, mas são muitos os que sobrevivem ao câncer. Muitos nunca mais terão recaídas dessa temível enfermidade que traz mudanças significativas de atitudes durante a vida. Quando me coloco no lugar desses “sobreviventes” penso que viveria cada dia com mais intensidade do que já vivo. E me angustia demais acompanhar aqueles que não tem mais sonhos e planos após uma experiência dessas, que te coloca em xeque-mate sobre a nossa mortalidade.
Ao acompanhar processos ativos de morte, percebo que o olhar é a primeira coisa que vai embora. Já estive ao lado de algumas pessoas em seu último suspiro e, imediatamente, o brilho dos olhos se esvai. Os olhos já mudam semanas a dias antes, mas no segundo da passagem, acontece a mudança mais expressiva.
Também percebo alguns olhos sem brilho naqueles que conseguiram se curar. Tenho grande dificuldade em lidar com o sentimento que em mim se desperta diante dessas pessoas, que cronologicamente sobrevivem à passagem do tempo sem projetos, sonhos, somente indo adiante. Essa passividade mediante a vida também pode ocorrer em pessoas que não passaram por nenhum grande processo de adoecimento, aliás, uma vida aparentemente feliz pode ser vazia.
O cuidado paliativo tem como um dos fundamentos permitir que a pessoa viva tão ativamente quanto possível até o dia de sua morte. Creio que esse fundamento foi desenvolvido muito baseado nas atitudes e falas de Cicely Saunders, a multiprofissional precursora do movimento do cuidado paliativo. Reproduzo aqui uma frase dela que diz: “Ao cuidar de você no momento final da vida quero que você sinta que me importo pelo fato de ser você, que me importo até o último momento de sua vida, e faremos tudo que estiver ao nosso alcance, não somente para ajudá-lo a morrer em paz, mas também para você viver até o dia de sua morte”.
Tive o privilégio de acompanhar pessoas que cumpriram essa premissa, de viver sua morte, o que não é fácil, mas é a última experiência vivida. Minha vó Linda foi uma que viveu ativamente até o momento que pôde, quando aos 88 anos seu corpo padeceu de um câncer de pâncreas. Isso tinha muito a ver com sua personalidade, com sua biografia.
Acompanhei também a Lia, jornalista e amiga que enfrentou um câncer de pulmão, me ensinou tanto durante sua trajetória, e viveu até seu último minuto de vida. Nos seus dois anos de travessia com a enfermidade ela seguiu com propósitos e projetos.
Escreveu uma dissertação de mestrado em que fazia uma narrativa do seu processo de adoecimento e os desafios de lidar com a dor crônica. Adentrou na arteterapia como ferramenta de tratamento, com elucidações sensíveis de seus sentimentos. Leu livros que ampliaram seu repertório de vida. Refinou o autoconhecimento de seu corpo, e percebeu a finitude próxima, não tendo medo de encarar despedidas. Se despediu da lua cheia numa quarta à noite. No dia seguinte, quinta-feira, na hora do almoço, se despediu dos pais, irmão e filhos. Faleceu fazendo escalda-pés neste mesmo dia, às dez e quinze da noite, sob a entoação de um mantra sagrado por seu companheiro. A médica que acompanhou o parto da alma de Lia, disse que o momento foi muito marcante e intenso.
Mas para que a vida se prolongue até o dia da morte, é preciso se aproximar do sofrimento que a doença causa e refletir sobre até onde se está disposto a ir. É preciso se despir de julgamentos e ter conversas difíceis para compreensão da história natural da doença, refletindo a que sacrifícios estaria disposto a se submeter. E é preciso viver cada dia, deixando de lado o tão ilusório controle, talvez pensando nos pequenos grandes momentos que nos constroem.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista