Durante os ciclos de vida, os papéis sociais dentro de uma família se alteram de acordo com o tempo, sendo dinâmica a composição dos afetos. Os eventos são muitas vezes previsíveis, mas invariavelmente, reorganizações familiares serão necessárias a depender do desfecho dos acontecimentos, e são delicados todos os momentos de mudanças. A evolução pode causar crises pessoais e a forma de enfrentamento é individual, mas a aceitação leva ao crescimento.
Nascemos frágeis, somos cuidados por longos anos para podermos ter algum grau de autonomia. Cuidar de alguém requer muita dedicação e muitas vezes abdicação de planos pessoais. As responsabilidades sociais são intensas até que um filho saia de casa independente emocional e financeiramente. Chega o momento quando esse filho cuidará das gerações futuras, porque na velhice haverá o retorno da necessidade do cuidado para as atividades mais simples de rotina.
Tenho refletido muito sobre esses papéis, e em como sentimentos vão surgindo dentro de mim em relação aos meus amores. Há dois meses minha mãe e minha avó Tata se mudaram e estão morando juntas. Há cerca de um mês levei minha vó na casa velha para pegar itens pessoais que estavam por lá. Estava um dia lindo de sol, bem quente. Tenho a certeza de que, se ela pudesse, iria sozinha pegar as coisas, caminhando na ida e na volta. Ela adora passear, caminhar. Mas me pego com receio, sabe? Medo dela andar sozinha, dela tropeçar, dela não ouvir algum perigo iminente. Mas ela não gosta desse excesso de zelo e faz questão de ter sua identidade preservada.
O medo não é dela, é meu… Acompanhar o envelhecimento é um ato de coragem. Envelhecer não é entrar na melhor idade, envelhecer é lidar com limitações impostas por um corpo e uma mente que não conseguem mais acompanhar a velocidade cruel do mundo atual. É também uma experiência dura de, teoricamente, estar perto da morte. Isso é quase obsceno numa sociedade que valoriza a juventude, a perfeição e a produtividade.
Nesse dia, encontramos em seu armário um diário escrito pelo meu bisavô, vô Bilo, como eu o apelidei quando ainda pequena. Ele descrevia os primeiros dias de nascida de sua bebezinha, como a chamava. Relatou que ela vinha bem de saúde, que o maior desafio era seu sono noturno ruim. Descreveu uma queda da cadeira de vime com uma galo na cabeça. Disse de uma viagem que fez com a “mamãe” e que ficaram tristes ao ter que partir. Memórias valiosas que me fizeram pensar na minha vó Tata enquanto bebê sendo cuidada amorosamente por seu pai e sua mãe.
Meu vô Bilo faleceu em 1988, duas semana antes de minha vó Bilo, sua companheira de vida. A história deles era de amor, tanto que parece que meu biso faleceu porque não estava disposto a viver sem ela. Previamente hígido para um senhor de 80 anos, quando soube do avanço da neoplasia da bisa, parou de comer, perdeu o prazer de viver e adquiriu complicações possivelmente pela idade e corpo já debilitado. Meu vô Bilo não estava disposto a ir adiante sem a parceira de vida.
E você, até onde está disposto a ir? A que sacrifícios você está disposto a se submeter, já pensou sobre isso?
O Conselho Federal de Medicina tem uma resolução, a 1995, que normatiza e assegura o direito de deliberarmos sobre o rumo que queremos ter no nosso adoecimento, devolve às pessoas a decisão de escolher como querem viver o fim de sua vida. A Diretiva Antecipada de Vontade e é um “conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”.
Deve-se lembrar que, em especial na velhice, a principal causa de morte é a evolução de doenças crônicas e degenerativas, e podemos ter que escolher se queremos ter a vida prolongada às custas do que chamamos de tratamentos prolongadores ou se respeitaremos o tempo de morrer priorizando cuidados de conforto. Você já pensou o que é estar numa Unidade de Terapia Intensiva? Já pensou como você desejaria morrer? Talvez no fundo a maior questão seja: prolongamento do sofrimento ou encurtar a valiosa vida…
Minha vó paterna Linda desde cedo sabia até onde estava ou não estava disposta a ir. No seu adoecimento por um câncer de pâncreas já metastático decidiu que não estava disposta a fazer quimioterapia que não a curaria. Quis doar o corpo para a faculdade. Quis que eu contasse a história dela para meus alunos, e assim o faço. Em geral conto a história dela ao dar minhas aulas de cuidados paliativos. E toda fez que faço isso, mais eu aprendo, e mais perto me sinto dela.
A medicina confere um pressuposto poder de lidar com a mortalidade. Mas a última batalha é sempre perdida, porque ainda morremos. O trabalho do médico não é em si garantir a sobrevivência de todos, mesmo porque isso é impossível. O objetivo deveria ser possibilitar o bem estar, controlar sintomas físicos, e permitir que as pessoas vivam plenamente o que for possível até o dia de sua morte. Isso tudo não somente durante o processo do morrer, mas sim durante todo o viver. Nós médicos, assim como todos, temos medo de morrer, e também é difícil para nós admitir as perdas e impotências. Mas diante do inevitável, as maiores questões deveriam ser discutidas individualmente, e as decisões tomadas de acordo com a biografia de cada um de nós.