Uma das histórias mais contundentes e vergonhosas que envolvem a ditadura militar que assolou o Brasil entre os anos de 1964 e 1985 é a do navio Raul Soares. Uma lata velha já em desuso que foi rebocada para o Porto de Santos com o degradante objetivo de servir de presídio para sindicalistas, militantes políticos e outros supostos inimigos do regime que surgia.
Sobre o assunto, acaba de ser lançado o breve e impactante relato “Sobrevivi ao Raul Soares – Memórias de uma época sombria”, escrito a quatro mãos pelo jornalista do Folha Santista e da Fórum e escritor Lucas Vasques e seu filho, o escritor, pesquisador e músico Fellipe R. Vasques.
O pequeno grande volume, com pouco mais de cem páginas, aborda o relato de Osmar Alves de Campos Golegã, que assim como milhares de moradores da Baixada Santista, era funcionário da Companhia Docas de Santos.
Tempos depois, foi escolhido para assumir um posto no Sindicato dos Empregados na Administração dos Serviços Portuários de Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão (Sindaport). Por este simples fato, mesmo sem nunca ter se envolvido diretamente em política (não que isso fosse uma justificativa plausível), foi encarcerado no malfadado navio. E por lá ficou, sem nenhuma acusação formal, durante meses, sofrendo toda a sorte de agruras, ao lado de vários outros trabalhadores.
Após um breve, detalhado e preciso relato da situação política no Brasil, que resultou na quartelada de 64, o livro conduz o leitor quase que como num filme para dentro dos porões do navio. Seco e direto, Osmar não se faz de vítima em momento algum. Observador arguto, descreve com precisão tudo que se passa em seu entorno. As péssimas condições de insalubridade, a comida estragada, as torturas físicas e psicológicas, o chão sempre molhado, enfim, a total falta de humanidade e respeito com que foram tratados pelos militares no tempo em que permaneceram por lá.
A farsa da ditadura
Os autores tiveram o mérito de perceber e perseguir seu relato para muito além da questão política. Osmar, que quando deu o depoimento para o livro estava com 89 anos, afirmou que não queria saber mais nada sobre isso. A experiência no Raul Soares o havia deixado farto de tudo. Este seu pretenso distanciamento, no entanto, é exatamente o que torna a sua história tão viva e, paradoxalmente, uma das mais politizadas sobre o assunto. É nela que se desnuda de vez a farsa da ditadura de que se vivia na época uma guerra contra perigosos comunistas, agentes assassinos de Moscou. Osmar era e sempre foi um homem simples, que vivia para prover e amar a sua família e nada mais.
O livro, no entanto, tem a proeza de colocar a simplicidade da vida de seu personagem dentro de uma moldura cruel, repleta de incertezas e injustiças. Não foram apenas aqueles poucos e inesquecíveis meses no navio. A ditadura o perseguiu, assim como a tantos outros, durante anos e anos. O caçou como um sujeito marcado que não conseguia arranjar emprego. E, mesmo quando foi trabalhar por conta própria, as perseguições prosseguiram.
“Sobrevivi ao Raul Soares” é uma obra imprescindível. Um relato claro e direto que nos constrange e deixa nítido um erro histórico: a falta de um acerto de contas dos militares que cometeram estes crimes com a Justiça.
Assim como o livro nos mostra, não se trata de revanchismo. A punição existe para que os crimes não se repitam. E os últimos anos de nossa vida pública têm nos mostrado que há vários novos criminosos querendo que algo parecido venha a ocorrer novamente.