“Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada…”
– A casa, Vinícius de Moraes
Eu sempre penso na estrutura.
Especialmente quando, em minha vida, coisas se repetem.
Gosto de uma frase que diz que quando estamos vivendo algo novamente, de forma semelhante, é porque precisamos aprender algo que não aprendemos da outra vez. E isso me incômoda.
Dia desses uma mulher que eu acabara de conhecer, amiga de uma amiga, disse no meio da conversa que só tinha amigos homens, que “mulher” era falsa para desenvolver este tipo de vínculo, que acabava por se tornar uma rival, uma inimiga disfarçada pronta para assumir o seu lugar no primeiro deslize.
E isso me incomodou.
– Mas isso é uma construção social – disse.
– Sim, mas eu já vivi algumas coisas que me confirmaram isso. – respondeu.
Eu também já vivi coisas que poderiam corroborar com essa teoria mal fundamentada. Mas não por que confiei noutra mulher, e sim por que somos pessoas, seres humanos, homo sapiens, e estamos fadados ao erro, ao descontrole sobre nossas emoções.
Mas meu pensamento nem sempre foi assim. Eu também já odiei as “amiguinhas” do namorado. Já surtei por conta de uma reação de rede social. Já senti dor por perceber olhares para além do meu corpo.
Confesso, às vezes ainda sofro com coisas assim, insignificantes.
Vejam, não estou me referindo à falta de respeito e à quebra de “regras” pré-estabelecidas. Erramos, mas precisamos nos responsabilizar por isso. Ainda que não tivéssemos a intenção de causar algo ruim, ainda que nem imaginássemos que determinada atitude pudesse ser dolorosa para o outro. Somos responsáveis pelo que fazemos, e nosso senso de responsabilidade nos permite mudanças.
Pensando nisso, nessa construção premeditada, lembrei da música A casa, de Vinícius de Moraes. De repente, comecei a ouvir na minha cabeça, lembrei da infância e senti como se fosse a definição perfeita de como construímos nossas relações.
Pensei nas milhares de mulheres mortas por seus parceiros. Violentadas, subjugadas, caladas. E concluí que essa ideia ficcional de que somos rivais, para além de fomentar uma competição inexistente e infrutífera, nos mantém prisioneiras.
Nós deveríamos nos falar.
Nós precisamos nos unir.
A situação que imaginei foi a seguinte:
– Uma mulher inicia uma relação. Ele é perfeito, educado, gentil, carinhoso. Ela se apaixona e eles começam a namorar, definem o laço. Após algum tempo, ou mesmo no começo, no meio de uma discussão corriqueira sobre algo que a incomodou, ele fica agressivo. Bate a porta. Dá um soco na parede. Depois pede desculpas, diz que nunca aconteceu antes, e ela acredita. Pronto, a relação continua e, um dia, ao ser contestado por ela, ele segura seu braço com força enquanto diz que ela é louca. Depois, num outro dia, ele chega após o horário combinado e, ao ser questionado, a empurra e senta no sofá. Depois, seguindo essa linha hipotética, ele dá um tapa na cara dela. E a faz sentir culpa, e ela começa a questionar a própria sanidade.
Eu posso afirmar uma coisa com certeza absoluta: Todas nós, mulheres, conhecemos essa história. Ou sabemos de alguém que a viveu – ou vive – ou nós mesmas já sentimos na pele.
Quando pensei nessa situação, imaginei assim: Tudo bem, começou a relação com o cara incrível, feliz e apaixonada. Daí, no primeiro sinal concreto de agressividade e descontrole, essa mulher decide entrar em contato com a ex-namorada do cara. Parece infantil, mas acompanhem o meu raciocínio.
“- Alô, tudo bem? Eu estou te ligando/escrevendo porque comecei a namorar com o seu ex-namorado. Espero que isso não te cause um desconforto, mas você é mulher como eu e a melhor pessoa com quem eu poderia falar. Dia desses ele foi agressivo comigo e me deixou com medo, preocupada. Queria que você me dissesse, sinceramente, se já aconteceu com você também.
– Oi, tudo bem. Nossa, que atípico este contato. Mas serei sincera sim, só peço para que me preserve. Ele me bateu uma vez, e foi muito difícil quando decidi terminar, ele me perseguiu por um tempo e eu senti muito medo. Espero que você seja mais inteligente que eu e não deixe que isso dure muito tempo. Quanto mais tempo, mais difícil. Boa sorte”.
Fim.
Imaginem essa situação.
Imaginem quantas mortes, dores, feridas, fraturas, poderiam ser evitadas se nós, enquanto mulheres, decidíssemos nos proteger.
Quantas?
Mas não, ao invés disso, acreditamos na rivalidade que inventaram para nos separar. E assim, dentro desta lógica, estamos vulneráveis.
Não somos rivais.
Estamos todas em busca de uma liberdade mais verdadeira, de direitos mais concretos. Lutamos juntas, sem saber, contra os mesmos fantasmas.
Dias atrás a internet foi tomada por nossa indignação. Uma mulher, estuprada e julgada como culpada, foi humilhada por homens numa audiência. O retrato de uma sociedade que odeia mulheres foi pintado publicamente, mas nós não deixamos por isso mesmo. Nos unimos, organizamos movimentos, marchas, abaixo-assinado, posts em massa. Em pouco tempo, tudo estava sendo revisto. Meninas que eu nunca vi se posicionarem a respeito postaram sua indignação nas redes. Eles despertaram o ódio de todas nós.
Isso é bom para que identifiquemos contra quem precisamos nos levantar. E que juntas, como as águas, somos maiores, mais fortes, mais cheias de vida.
Precisamos saber com mais clareza que tipo de coisas não vamos mais aceitar. Que não é justo se conformar com algo que a faz sentir mal, que vale a pena abrir mão do peso de esperar que o outro se torne o que você precisa, admira, deseja. Reconhecer quando algo não é para nós, sair de cena, se preservar.
Devaneios simples que podem transformar o cenário, que podem nos manter vivas.
E precisa ser interno primeiro, na nossa percepção individual, nos nossos olhos embotados de definições inventadas.
Eu acredito na mudança.
Deus é mudança.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista