“Só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno delas; só nos onde os olhos” (João Guimarães Rosa).
Era um domingo ensolarado, combinava com uma pedalada e com um mergulho na praia. Desde que retornei pra Santos, o mar se tornou meu refúgio. A ciclovia estava mais cheia do que costumo pegar nas idas e vindas do trabalho. As pessoas estavam felizes, talvez pelo sol, talvez pela brisa, talvez por ser o dia em que o uso emergencial das vacinas contra a Covid-19 seria autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Será que é o começo do fim desse pesadelo?
Os sorrisos estavam evidentes nos rostos das pessoas, no meu também. Aproveitei o momento e lembrei dos conselhos de Rosa, uma senhora que cuidei nas últimas duas semanas. Em todas as manhãs, quando ela me via, falava que eu tinha que dar mais risada. Eu perguntei se eu não ria muito e ela me disse que não. E complementou: “Essa doença é cruel, Juliana, as pessoas precisam de alegria”.
Desde então tenho tentado ficar mais atenta à linguagem do meu corpo, e não sorrio muito mesmo. Não por estar brava, mas por estar sempre tentando resolver problemas e pensando em questões e na próxima tarefa. Mas na ciclovia eu sorria, queria que Rosa me visse.
Quando Rosa me faz este pedido, logo me vem à cabeça Ednalva. Ela era uma mulher sofrida, teve uma vida difícil. Engravidou cedo, foi mãe solteira de uma filha que nasceu com necessidades especiais, sendo acamada, não se comunicava e usava dispositivos para se alimentar.
Ednalva passou a vida se dividindo entre o trabalho como empregada doméstica e os cuidados com a filha. Perto dos cinquenta anos desenvolveu um câncer de mama agressivo que nunca respondeu bem aos tratamentos.
Em sua trajetória me lembro de que seus exames de rotina sempre evidenciavam piora de sua doença, e que mudei algumas vezes as linhas de tratamento na expectativa de que alguma vez teríamos melhoria do seu estado de saúde.
Em todas as consultas o que mais me chamava a atenção era sua tristeza, ela nunca sorria. Um dia ela chegou com um riso largo na consulta e isso me chamou a atenção. Perguntei o motivo e ela me disse que era porque tinha resolvido que não queria mais tratar.
Não me sinto preparada para muitas das conversas que tenho na minha rotina. Esta, em especial, foi uma das mais desafiadoras. O que dizer para alguém desencantado?
Luciana enfrentava um câncer e ficou curada após uma cirurgia bem mutiladora, que além de tirar sua mama tirou a capacidade dela movimentar o braço esquerdo. Ela ficou com este membro bastante limitado, não o elevava acima do ombro. Tinha dor, câimbras e desenvolveu o que chamamos de ombro congelado. Fez fisioterapia, acupuntura, alongamento e tudo que era possível sem melhora. Assim, foi indicada uma cirurgia ortopédica que, a princípio, teria uma boa resposta devolvendo algumas liberdades a ela.
Dormir já não era tarefa fácil, assim como vestir uma camiseta. Ela, que já tinha um quadro depressivo prévio, desenvolveu uma grande melancolia que a deixava num grande vazio existencial. Já tinha sinalizado o problema alguns anos antes quando tomou, de uma só vez, uma cartela toda de seus calmantes.
Nesse momento, reforcei o acompanhamento psiquiátrico, a encaminhei o Centro Atenção Psicossocial (CAPS) e ela começou o uso de antidepressivos. Mesmo assim, a dor de uma separação parece que reacendeu a ferida e ela veio em consulta comigo com os olhos desencantados. Não tinham brilho. Uma profunda dor era sentida e emitida por ela.
De novo uma consulta para a qual eu não estava preparada. Uns dois meses depois desse encontro a tristeza acabou ganhando mais espaço na vida que ela mesma interrompeu. Foi encontrada uma carta escrita por ela, em que agradecia a equipe de saúde por todo o amor que oferecemos a ela. Mas que ela não conseguiria seguir adiante.
Depois de Ednalva e de Luciana quem precisava de ajuda também era eu. Me sentia exausta e incapaz de resolver as demandas médicas, sociais e psicológicas que as pessoas me traziam. Será que houve alguma falha minha que tivesse colaborado para os desfechos? Os erros podem ser inadmissíveis. Não via em mim, naquele momento, nenhuma capacidade de mobilizar, transcender ou criar novas oportunidades. Me sentia vazia, oca, em um momento de dor em que tentava refletir sobre a percepção da vida. Pensava na nossa vulnerabilidade, na nossa finitude e na minha impotência.
Seguia o cotidiano de forma quase coisificada, na mesmice da rotina até que um dia chegou uma carta de um aluno. Nessa carta recebo uma prerrogativa de novas aberturas para o mundo, tornando-o visível e me auxiliando um novo sentido. Ela dizia o seguinte:
“Dra Juliana, eu ainda estou tentando entender o real motivo de estar escrevendo essa carta. A verdade é que, desde meu primeiro encontro no Núcleo de Cuidado Paliativo, muitos sentimentos e pensamentos foram despertados dentro de mim, de forma que meu coração pede para que eu coloque em palavras. (…) Vinha desanimado com a medicina e um pouco perdido, e o Núcleo mudou a minha vida. A cada encontro me apaixono mais pela filosofia dos cuidados paliativos, adequei minha rotina e meus horários de acordo com as reuniões para, de certa forma, nortear meu caminho. Você e a professora Dea carregam valores que não são ensinados em faculdade alguma. Para fazer o que vocês fazem, não basta ser médico, tem que ser muito humano. (…). Escrevo essa carta para te mostrar que você pode ser muito importante na vida de um aluno. E que isso seja uma motivação para continuar sendo professora e, consequentemente, inspirar as pessoas”.
Essa carta, que me lembrou as correspondências trocadas entre os escritores Franz Kappus e Rainer Maria Rilke, documentadas no “Cartas a um Jovem Poeta”, foi uma resposta às minhas inquietações.
Nesta publicação, no texto escrito por Rilke em 17 de fevereiro de 1903, encontro também acolhimento ao meu vazio: “Por isso, prezado senhor, eu não saberia dar nenhum conselho senão este: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida; nesta fonte o senhor encontrará a resposta para a questão”.
A carta que eu recebi mudou muito minha trajetória em diversos sentidos e reiterou a capacidade de transformação do mundo pela educação. O Núcleo de Cuidado Paliativo, que é uma liga acadêmica dentro da Universidade, é meu jardim onde semeio minhas flores mais belas, e almejo um jardim colorido e frutífero. É uma atividade extracurricular aberta a qualquer acadêmico de todos os cursos da faculdade.
Os nossos encontros são multiprofissionais, desenvolvemos conceitos dos cuidados paliativos, discutimos casos clínicos, lemos textos, vemos trechos de filmes, fazemos roda de conversas e cuidamos de nós mesmos.
No final de cada ano, fazemos sempre um encontro para autocuidado. E ao final de cada encontro acho que sorrio, assim como na ciclovia, assim como dona Rosa quer. E não somente com os lábios, mas também com os olhos e com o coração.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista