“Quando eu morrer
Voltarei para buscar os instantes
Que não vivi junto do mar”
(Sophia de Mello Breyner).
Há quem diga que a sorte anda ao lado dele. Mas tudo depende do ponto de vista. Existe sobreposição de sortes? Você diria que a sorte maior é a sobrevivência a dois naufrágios ou a cura de um câncer de pulmão? Em especial se este homem for um pescador humilde que fugiu à morte precoce por falta de acesso à saúde. Mas não fugiu da educação que não educa, nem dos subempregos que não ampliam seu potencial. Mesmo assim, ainda é sorte?
João Cândido tem o oceano na sua trajetória antes mesmo de nascer. Dizem que o mar protegeu e alimentou o tataravô de seu pai, um africano escravizado que sobreviveu à viagem transatlântica. Porém, mais do que a heroica sobrevivência nesta primeira viagem, quando ele chegou em solo brasileiro, pelo relato oral de sua família foi um escravo que ficou entre os tripulantes permanentes. Em seu navio negreiro tinha cerca de quinze escravos africanos marinheiros que executavam diversas tarefas a bordo. Fez, então, inúmeras travessias em condições higiênicas precárias e falta de suprimentos adequados, além dos dias de mares revoltos. Talvez tenham começado aí as habilidades ancestrais que permitiram ao João não morrer em dois naufrágios.
Me contou esta história logo no nosso primeiro contato, quando eu lhe disse que, apesar da seriedade do que teve, não precisaria nem fazer quimioterapia e nem radioterapia. Fugindo ao comum, fez um diagnóstico precoce e sua cirurgia o tinha curado. Neste momento ele sorriu, olhou bem nos meus olhos, e cantou com fé:
“Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Dandalunda, Janaína
Marabô, Princesa de Aiocá
Inaê, Sereia, Mucunã
Maria, Dona Iemanjá”.
Esta é uma história de pescadores.
Para o pescador, o mar é sobrevivência e amor. Por isso ele não se contentaria com um emprego “no chão”.
João Cândido nasceu em Ilha Comprida, numa comunidade de pescadores, pelas mãos de uma parteira que desconhecia as letras do alfabeto, mas também lia o mar. Como todos em sua região que nasceram no ventre úmido da Mata Atlântica. Foi batizado na Paróquia Nossa Senhora Estrela do Mar na data de 29 de junho, escolhida pelo seu pai por ser o dia de São Pedro, o padroeiro dos pescadores. Não tinha sido um ano fácil aquele de 1945. Sua mãe andava doente e estavam num período em que o mar não estava para peixe. O desejo da família era conseguir agradar o santo solidificando a sua fé e, por que não, também fazendo simpatias. Umas das frases mais comuns de se ouvir em sua casa era: “Pedro, Pedro, Pedro, a chave do céu é vossa, portanto ajude-me no que estou necessitando”.
E não é que parece que ele escutou…
Sua mãe ficou curada e eles, anualmente, participavam religiosamente da Festa de São Pedro. Iam à missa campal e à procissão marítima com sua embarcação toda ornamentada. Em 1978, aos 33 anos, já morando no bairro do Perequê, na cidade do Guarujá, durante uma pesca para abastecimento das comidas originárias da festividade, se viu pela primeira vez com o risco de morrer. O complexo sistema de ventos e correntes do oceano foi afetado por uma mudança da fase da lua e o deixou vulnerável. O ímpeto da maré foi maior do que sua habilidade e ele sobreviveu graças a grande quantidade de colegas que estavam ao seu redor e presenciaram o momento em que seu barco foi destruído e afundou. Mais uma vez São Pedro o ouviu…
Seu segundo naufrágio poderia virar um conto a parte. No mês de agosto de 1990 ele estava no mar, entre bancos de areia, e viu um certo peixe que parecia ter um tamanho considerável. Ele veio do fundo e ficou mais perto da superfície a uma distância não muito longínqua da embarcação. Parecia ter um contraste entre duas cores, sendo uma delas um azul turquesa. Sem barbatanas.
João Cândido, mesmo sendo íntimo das águas, parece que se encantou ou se desorientou, ele não sabe bem. Num fugaz instante perdeu a direção do barco atingindo o banco de areia que danificou a embarcação e ela afundou. Perdeu a tarrafa e outros utensílios cotidianos de trabalho. Nadou até um local que conseguiria ser visto para ser resgatado. Apesar do frio das águas do inverno sentia uma suave corrente de água aquecida passando pelo seu corpo. Apesar do medo, sentia paz. Foi resgatado antes que a escuridão da noite dominasse o céu. Desta segunda vez que foi salvo da morte parecia que São Pedro não estava sozinho.
Desde então, João colocou uma estátua de Iemanjá ao lado de São Pedro. Ao retornar de viagens prósperas e seguras, ele acende uma vela para cada um agradecendo a benção. E assim também fez quando, ao fazer uma radiografia em 2020 por medo de estar infectado com o coronavírus, descobriu uma pequena massa no seu pulmão. Quando o médico disse que precisaria operar ele rezou, pediu fé, força e coragem. E parece ter sido contemplado. Em 02/02/2021 retirou um pedaço do pulmão e, com ele, todo o câncer. Seu pós-operatório não foi fácil, teve uma complicação numa membrana que recobre o pulmão que ficou grudada como uma goma de mascar. Seu pulmão perdeu a leveza e era difícil respirar. Encarou pela terceira vez o rosto da morte. Se enlaçou na finitude nos dez dias que permaneceu intubado na unidade de emergência. Mas como fez diversas vezes desatou o nó e foi flutuar pela vida.
Seu sonho atual é escrever um livro sobre sua história. Mas disse que o difícil é que a história ainda está longe de acabar e não sabe como vai escrever algo sem saber o final. Desta vez fui eu que sorri, olhei bem nos olhos dele e recitei com fé João Guimarães Rosa: “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.