Eu tinha uns cinco anos. Enquanto aguardava minha avó na saída da pré-escola, ali na Avenida Ana Costa, um menino da mesma idade e turma apontou pra mim e sentenciou: “Você tem cabelo de Bombril”.
Naquele momento, completamente desarmada, só soube sentir desconforto e perceber que aquela fala não era uma mera constatação de uma característica, como seria dizer de alguém que é alta, baixa, gorda, magra, preta, ruiva…
Demoraram muitos anos pra entender que aquele seria o primeiro ato de racismo do qual teria consciência e os efeitos deste, e de outros tantos, na construção da minha subjetividade.
Nessa mesma época, aquela avó me sentava numa almofada entre as suas pernas e trançava o meu cabelo, fazia diferentes penteados finalizados com fitas coloridas, enquanto ia conversando comigo sobre a vida, tecendo ali também a minha identidade.
É muito significativo que o mesmo cabelo que construiu afetos tão enraizados em mim, seja também o primeiro alvo de racismo. Não acho, entretanto, que haja coincidência, nem aleatoriedade nisso; o cabelo é um importante marcador de identidade, expressa visivelmente a consciência racial e, por ser suscetível à mudança, revela uma escolha do sujeito que o porta.
Por isso o cabelo, sobretudo das mulheres negras, se tornou um objeto de disputa que ultrapassa a beleza e adentra o campo do discurso e da representação identitária. A intensificação da transição capilar na última década confirma nossa determinação por uma descolonização estética.
Nos anos 1980 e 1990, onde começa essa história, era muito comum surgir numa conversa a pergunta: “O que você vai fazer no seu cabelo?”. Isso se dava porque o simples ato dele crescer de nossas cabeças, livre, sem intervenção, parecia algo inconcebível. Mas, trazia um outro problema: a escassez de lugares e produtos voltados para as especificidades do cabelo da população negra.
Essa demanda desencadeou o surgimento de salões de ‘beleza negra’, criando um setor de negócios que pode ser considerado um dos precursores do black money. Arrisco dizer que o salão foi o primeiro espaço de sociabilidade, para além do meu núcleo familiar, formado majoritariamente por pessoas também negras.
Lembro de frequentar, o Black Boy ali no Campo Grande, atual salão do Toninho, que era um de seus principais cabeleireiros; do Salão do Buiu e da Sandra das Tranças, no Centro de Santos; o Déo e a Xuxa no Macuco; uma prima era cliente do Força Negra, que ficava em São Vicente.
Contemporâneo destes empreendimentos, o Espaço Afro e Cia foi fundado por Jacira Rosa, após um corte mal executado de um cabeleireiro que desconhecia as particularidades do seu cabelo.
A ausência de espaços com este perfil em Vicente Carvalho fez com que ela mesma pesquisasse técnicas capilares, primeiro de forma autônoma, o que a fez ser requisitada por parentes e vizinhos, e depois com uma formação técnica, que permitiu transformar aquela atividade em um negócio aberto ao público.
Ela conta que no programa do curso também não havia informações sobre cabelos afro, e precisava ficar após o período das aulas regulares com a professora, por ventura uma mulher negra, para aprender mais sobre esse segmento. As atualizações foram sendo construídas ao longo dos anos com especializações realizadas principalmente em São Paulo, o que a levou a conhecer outros profissionais e criar uma rede.
Já faz 37 anos. O salão segue na ativa e se tornou referência no seu território. Jaci se orgulha em dizer que desde então é responsável pelo visual de clientes fiéis atravessando gerações da mesma família: mães, filhas e netas.
Concentrar-se na especificidade capilar negra não significa, entretanto, a repetição de uma mesma prática. Ao contrário, se trata de cuidar dos fios para possibilitar tantas variações quanto forem desejadas. Cortes black power, alisamentos químicos ou físicos, permanente afro, kanekalon, box braid, alongamento, trança raiz (ou nagô), escovas, uso do bigudinho, relaxamento, dreadlocks, são apenas algumas das técnicas dominadas pelas cabeleireiras afro. Não existe uma única maneira de ser negra e os cabelos são prova evidente disso.
Se a produção de impacto social serve para melhorar a sociedade, isso passa, necessariamente, por torná-la mais inclusiva. Se a sociedade está estruturada sobre o racismo, legitimar a existência, gerar visibilidade, romper estereótipos e valorizar corpos dissidentes é, consequentemente, parte importante dessa equação. Promover a geração de renda de forma autônoma também.
E é por isso que eu entendo que negócios dedicados à beleza negra têm a vocação de ser também negócios de impacto social.
Considero negócios de impacto aqueles que subvertem a ordem hegemônica, contribuindo para a criação de representações positivas e sustentabilidade de pessoas alijadas de posições de protagonismo, em decorrência de processos de exploração e invisibilidade construídos historicamente e reproduzidos até os dias de hoje.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista