Foto: Rodrigo Savazoni

Abro o álbum de fotos que ganhei no dia de meus 37 anos. Um presente de namorada, como ela dizia, recheado de imagens de nossa jornada amorosa. Entre as fotos, uma carta. Retiro-a do plástico, desdobro o papel e noto que Lia a escreveu de Denia, cidade da costa espanhola onde passou alguns meses trabalhando como garçonete de um restaurante estrelado que servia, sobretudo, turistas alemães. Foi contratada justamente porque falava muito bem alemão.

A carta é datada de julho de 2002 e eu não me lembrava de seu teor. Ao iniciar a leitura, constato que é um registro do único período de nossas vidas em que ficamos separados. Manuseio-a como um documento histórico. Entre relatos de seus dias europeus, epifanias geradas pela distância e a descrição de discos e livros que comprou para nós, ela lastima não poder comemorar comigo meu aniversário no bar “Ó do Borogodó”, na Vila Madalena, do qual éramos frequentadores habituais. Recordo-me da tristeza de não tê-la ao meu lado naquela festa de 22 anos.

No álbum, há uma anotação junto à carta:

“Autoengano: por anos achei que não era apaixonada. Tolinha. Achei uma prova…que diz totalmente o contrário”.

Percebo sua letra arredondada, com o caimento das canhotas, e me comovo pensando que jamais receberei outra carta escrita por ela, que tanto gostava de escrevê-las.

Tento evitar o choro, mas eis que topo com este trecho:

“Vai junto nessa cartinha uma poção de pirlimpimpim. É invisível, mas pode ter certeza que está aí, pois fui eu mesma que preparei. Um pouco de fantasia para seus dias tristes. Sempre que quiser estar ao meu lado, feche os olhos, diga “pitanguinha pim, pim, pim”, que estarei vivinha em seus pensamentos, na forma que você quiser. Forma menina-tontona, forma menina-mulher, forma fulana burguesa, forma Lilica com sono…”.

O texto se encerra com uma afirmação de que voltaria ao Brasil para sermos felizes para sempre e uma assinatura envolta em desenhos de beijos, bocas de vários tamanhos.

***

Num salto, minha memória me leva ao Centro Cultural São Paulo, para algum dia de 1999. Estamos fazendo hora para ir ao cinema, nosso passeio de namorados predileto. Ela olha para o jardim interno e avista uma pitangueira, com uma placa de identificação: Eugenia Uniflora. A gente cai na gargalhada porque adoramos o nome científico da pitangueira.

– Eu deveria me chamar Eugenia Uniflora – Lia diz.

– Podemos chamar nossa filha assim – sugiro.

– Não, coitada – responde e gargalha.

E assim nasceu Lilica Pitanguinha Eugeninha Uniflora, uma das personagens de nosso universo lírico particular, a versão contemporânea da menina livre que gostava de correr atrás dos meninos só para mostrar a eles como era melhor e mais rápida; que trepava no galho mais alto da árvore e depois dormia guardada no armário-cama da escola libertária em que estudou.

A Lilica Eugeninha não tinha medo, ou se tinha era bem pouquinho. Era esquecida pra umas coisas, e de outras se lembrava como ninguém. Sabia contar histórias e fazer feitiços, como se fosse das terras perdidas de Avalon, herdeira de Morgana e Viviane. Era fã da poderosa Feiticeira dos desenhos do He-Man, que vivia sozinha num castelo e se comunicava por telepatia.

O gosto de seu lábio era uma mistura singular de doce e amargo, como o da pitanga.

* * *

Estamos em 2019. Para enfrentar os efeitos do câncer, ela havia iniciado um tratamento com o Mestre chinês Liu Chih Ming, acupunturista, filho do grande mestre Liu Pai Lin. Suas sessões eram no bairro da Liberdade e costumavam ser semanais. Nessa época, além da acupuntura, passou a praticar Tai Chi Chuan, com e sem espada, e a seguir preceitos do taoísmo, essa filosofia milenar que busca oferecer caminhos para uma longa vida e que o médico, músico e terapeuta chileno Cláudio Naranjo dizia ser a mãe de toda espiritualidade.

Às vezes, entre uma atividade e outra, descia na estação Vergueiro do metrô e ia ao Centro Cultural São Paulo fazer hora. Numa dessas ocasiões, me liga, dizendo que está com saudade.

– Sabe onde estou?

– Em São Paulo

– Sim, boboca, mas estou aqui no Centro Cultural São Paulo, olhando para a Eugeninha.

– É mesmo? Ela segue por aí?

– Sim, grande e bonita.

– Que legal! Quando trabalhei na prefeitura eu gostava de ir aí e olhá-la, você se lembra que eu te ligava para contar?

– Sim, claro. Olhar para ela me faz lembrar de nós dois, das tantas vezes que viemos juntos aqui.

– Era muito bom ir aí com você.

* * *

A pitangueira é uma árvore nativa da América do Sul e seu nome significa “vermelho” em tupi guarani. Os indígenas a utilizam com várias finalidades. Uma de suas características principais é ser um poderoso estimulante. Para nossos parentes, um banho de folhas de pitanga cura tristeza profunda, dá ânimo, vontade de viver.

Nem eu nem Lia sabíamos dessas propriedades quando começamos com a brincadeira da Eugeninha. Nos interessava apenas o universo lúdico infantil que seu nome científico convoca.

Para nossa surpresa, descobrimos também que na tradição afro-brasileira, do Candomblé e da Umbanda, a pitanga está associada tanto a Oxóssi, o orixá que me guia, quanto a Iansã, a deusa que Lia cultuava. Também tem conexões com Oxum. Uma tríade de muito amor, Oxóssi, Iansã e Oxum, que abençoou alguns dos mais belos momentos de nossa vida amorosa.

Os banhos de pitanga são purificadores, trazem expansão, movimento e cortam as negatividades. Do jeito que entendo, sem ser um especialista em conhecimentos e práticas ancestrais, a pitangueira serve para colocar as coisas no lugar, apontando para o equilíbrio.

Como escutei uma vez de um mestre espiritual, ela nos centra, e com isso nos dá foco para que tomemos uma determinada atitude.

Justamente por movimentar as energias órficas, é uma planta de prosperidade.

* * *

Na véspera de seu aniversário de 41 anos, ocorrido este ano, peço ajuda à minha amiga Débora para irmos de carro a um centro de jardinagem localizado na esquina da Afonso Pena com o canal 6. Eles têm de tudo nesse lugar, e eu e Lia adorávamos frequentá-lo.

Eu queria dar a ela um presente especial, algo que tivesse um profundo significado e pudesse permanecer conosco mesmo se algo lhe ocorresse.

O dia 28 de fevereiro amanhece, preparo seu café-da-manhã, e aviso a ela e as crianças que faremos um passeio. Eles topam e os conduzo até a casinha que alugamos para ser nossa nova morada. Abro o portão e Júlia e Chico, que já não são tão crianças, saem em disparada como faziam quando eram mais novos. Atrás deles, seguimos nós, caminhando de mãos dadas.

Há no quintal apenas um antigo vaso com inúmeras espadas de São Jorge adornando um deserto de cimento. Na sala da casa eu havia deixado um vaso de cerâmica de barro e um pé de pitanga, sob uma faixa colorida que diz: feliz aniversário.

Lia se emociona. Explico que aquele seria um ritual de prosperidade. Uma tentativa de juntos fazermos uma mágica. Conto o que descobri sobre as propriedades da pitangueira, e nós dois rememoramos para nossos filhos as histórias de Eugeninha Uniflora, os passos inaugurais de um amor cujos principais frutos são eles.

Junto à árvore, lhe entrego um kit de jardinagem, com o pedido de que permaneça comigo para poder fazer de nosso quintal uma floresta. Sigo os passos do plantio conforme me explicou o vendedor no dia anterior. Juntos, colocamos a mão na terra.

Em quinze minutos, Eugeninha já tem sua nova morada, mas percebo que me esqueci de um dos itens, um tecido que deveria ir por baixo de tudo, junto às pedras que servem para drenagem. Lia e as crianças riem de mim, porque, obviamente, um jardineiro inexperiente como eu seria incapaz de fazer tudo certo.

Findo o plantio, levamos o vaso com a Eugeninha para o quintal. Lia, Juju e Chico regam nossa árvore da vida, que foi a primeira habitante da nova casa.

No começo deste mês de outubro, cinco meses depois da morte de Lia, noto as primeiras florzinhas brancas nos galhos de Eugeninha, que já está bem maior e mais forte.

* * *

No dia 8 de outubro de 2020, a saudade é imensa.

Leio e releio a carta de Denia. Em algum horário silencioso da madrugada, exausto, deito-me para dormir. Desperto sem perceber quanto tempo havia se passado desde que dormira. Anoto no celular algo que escutei durante um sonho e volto ao sono. Ao me levantar, pela manhã, fico em dúvida se aquilo havia acontecido mesmo, mas lá estão eles, no aplicativo de notas do telefone:

Pitanguinha pim, pim, pim

quero ser teu passarim

Pitanguinha pim, pim, pim

seu feitiço não tem fim

Pitanguinha pim, pim, pim

não se vá, não faz assim

Pitanguinha pim, pim, pim

vive bem dentro de mim

Ao lê-los, surpreso, os recito bem alto, algumas vezes, porque desconfio que são um poderoso feitiço que a trará de volta para mim. Doce ilusão.

Penso que ao menos são singelos os versinhos e que Lilica Pitanguinha Eugeninha Uniflora, a que fazia pó de pirlimpimpim para seu namorado, gostaria de ouvi-los.

* * *

A vida pede que inventemos nossos rituais. De uns tempos pra cá, quando estou muito muito triste, vou até a Eugeninha do quintal e lhe peço a gentileza de me doar algumas de suas folhinhas. Com elas, faço um chá e dele me banho. Costumo me sentir melhor depois.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista