Eu, há muito tempo, evito ler e assistir notícias sobre crimes.
De repente carrego algum trauma inconsciente por ter crescido vendo meu pai acompanhar programas sensacionalistas sobre tragédias várias, e aquilo me embrulhava o estômago. Em meio a gritos de “bandido bom é bandido morto”, “olha lá, uma menina tão linda se envolvendo com esse tipo de gente” e “cuidem das suas crianças”, tudo, desde a postura do apresentador até sua voz em tons elevados, me incomodavam ao ponto de me impossibilitar permanecer na sala.
Às vezes eu até intervinha “Desliga isso, só desgraça!”, mas no outro dia lá estava o televisor ligado e o homem só, num palco, gritando o quanto as pessoas se perdem no mundo por não serem coisas como “tementes a Deus”.
Essa semana eu me deparei com a notícia de que uma menina de DEZ anos de idade, grávida do próprio tio que a estuprava desde os SEIS anos, aguardava a liberação judicial para a realização do aborto legal e seguro, como previsto na lei para essa situação absurda.
O impensável está aí, o crime está aí, a vítima está aí. E eu tenho o grande defeito de achar que as coisas são tão óbvias para todos como são para mim, e não são. Então, após dias de um sofrimento que eu não ouso mensurar, a justiça decidiu a favor da realização do procedimento.
Neste momento, uma mistura de alívio e indignação pelos passos homeopáticos da justiça brasileira tomou conta de mim. Entre lágrimas de raiva e pensamentos de que fique tudo bem com ela, recebi outro tapa na cara: O estado do Espírito Santo se recusou a cumprir a medida sob a alegação de que “a idade gestacional não está amparada pela legislação vigente”. Mesmo sabendo que neste caso, pela forma como foi concebida a gravidez, decorrente de um estupro, não importa o tempo de gestação, o aborto continua respaldado pela lei.
Então, se a justiça determinou que o procedimento fosse realizado de imediato, da melhor forma possível, preservando a vida da criança, como um corpo médico pode se recusar a fazê-lo? Além do que, no caso específico dessa menina, o aborto mesmo em idade gestacional mais avançada, é inquestionavelmente mais seguro que o parto.
Mais uma aberração em terras brasileiras. Mais medo, mais insegurança de ser mulher aqui, num país que se preocupa mais com o controle do nosso corpo do que com as violências que sofremos dia após dia. Num país que diz se importar com a vida de um feto mais do que a de uma criança de 10 anos fragilizada e vulnerável por anos de violência sofrida. Simone de Beauvoir cunhou o termo “o segundo sexo” para se referir a nós, mulheres, dentro da sociedade, mas hoje eu posso certamente dizer que somos o último. Nem o segundo, nem o quinto, o último.
A menina então foi deslocada para o Estado de Recife onde o procedimento seria realizado. Porém, o que parecia o fim de uma tortura, foi o início de uma nova atrocidade: manifestantes fundamentalistas religiosos se reuniram em frente ao hospital alegando fazerem parte de um movimento “pró vida”.
O grupo, tendo como expoente máximo Sara Winter, uma aproveitadora que surfa nas marés favoráveis e que encontrou voz de liderança neste meio – além de ter divulgado de forma criminosa o endereço do local e dados pessoais da criança – gritava contra a interrupção da gestação, e chamavam o médico que cumpriria a medida de assassino.
Esse vídeo eu assisti. E esse vídeo me fez desabar num misto de dor e incredulidade. Que tipo de deus é esse em que essas pessoas acreditam? Que tipo de vida defendem esses indivíduos que preferem proteger um feto em detrimento de uma menina de 10 anos abusada há 4 anos pelo tio? Que tipo de manifestação pacífica é essa realizada na frente de um hospital, atrapalhando os pacientes e gerando desconforto em todos que estavam lá? Sem contar as tentativas de invasão do local, e todas as palavras horríveis que foram proferidas em direção a essa criança de 10 anos amparada pela lei.
Eu não tenho religião, e vejo claramente a cegueira que a religiosidade causa. Ao mesmo tempo em que vejo um futuro melhor nos olhos dos nossos filhos, em que ensino o amor e o respeito à diversidade, vejo o quanto outras pessoas declinam, cada vez mais baixo, de forma cada vez mais vulgar, como se o cérebro atrofiasse gradativamente por falta de interpretar entrelinhas.
Parafraseando Kant, a burrice pode ser comparada com uma doença mental: O burro não sofre, sofre quem está ao redor. O burro é incapaz de perceber algo, ele sofre de uma incapacidade, não consegue se pôr no lugar do outro, não sente empatia verdadeira, e eu não vejo melhor definição para essas pessoas que estavam na porta do hospital. Prefiro inclusive pensar que elas realmente fazem esse tipo de coisa por serem incapazes de sentir pelo semelhante e não por realmente acharem coerentes seus motivos.
O procedimento foi realizado de forma segura, respeitando a lei e a vontade soberana da própria criança de não seguir com a gravidez.
O tio da menina, suspeito pelo crime, foi preso nesta madrugada.
As redes sociais da Sara Winter, caíram.
Se eu estiver certa, essas pessoas não vão para o céu, porque não há.
Se eu estiver errada, elas também não vão, porque são hipócritas.