Semana que vem vai fazer oito anos que minha mãe morreu.
Oito anos.
São 2.918 dias, desde aquele 27 de outubro em 2012, até hoje.
Daquele dia, o dia em que senti claramente a conexão do meu corpo com os meus sentimentos, o dia em que chorei abraçada aos joelhos enquanto sentia meus pulmões colarem me impossibilitando de respirar e meu coração apertado, como se estivesse sendo comprimido por uma mão grande e invisível, cheia de raiva, sem nenhuma piedade das minhas lágrimas infantis e incontroláveis.
2.918 dias se passaram.
Já não lembro exatamente quantos dias fiquei enterrada na minha cama, absorta num ponto neutro entre a realidade e uma ficção que eu arquitetava, a fim de questionar a veracidade dos fatos que se apresentavam, tentando pateticamente entender os “por quês” de uma atitude tão drástica, de forma tão impiedosa e desesperada.
A mulher que me trouxe à luz, a mulher para quem eu não tive tempo de dizer que aprendi a compreender, que li sobre o passado, vi as correntes e, principalmente, que entendi por que ela acentuava, repetidamente, que eu deveria ser independente e nunca precisar de um homem para viver.
Ela, a minha mãe.
Eu, a caçula de cinco irmãos.
Agora lembro de quando retornei para a faculdade – depois de alguns meses, lidando com a nova realidade – e como a notícia se espalhara por entre colegas e professores.
Entre uma sala de aula e outra, percebia nos corredores nitidamente os olhares em minha direção, num misto de pena e tristeza. Algumas pessoas se arriscavam em me consolar, outras verbalizavam sobre a minha “força” por ter “passado” por tal situação e estar ali, viva, retomando minha vida.
Engraçado como as pessoas são hipócritas, como nós mesmos, incluindo a mim, somos prepotentes e egocêntricos. Como poderia eu, depois de perder a pessoa que me ensinou a viver e amar, me sentir no direito de sofrer a ponto de não conseguir continuar sustentando a vida que ela lutou para me dar?
Não entendia muito bem o que as pessoas queriam dizer com aquelas palavras decoradas para situações como essa, mas agradecia e continuava tentando entender por que eu deveria passar por isso.
– Suicídio. – Ecoava na minha cabeça. – Suicídio.
Como você explica para alguém que perdeu sua mãe após uma tentativa de suicídio? Como dizer, sem parecer ridícula, que a pessoa que você mais ama na vida, morreu após quatro dias de coma induzido, ocasionado por uma tentativa de suicídio?
Eu não sabia, inventava história:
– Acidente de carro.
– Infarto.
– Parada cardiorrespiratória.
Medo. Lembro de sentir meu corpo gelar quando alguém perguntava sobre ela e eu, sem graça, dizia “Não tenho mais minha mãe”. Após a resposta, que mais parece um soco para quem ouvia, observava claramente os olhos da pessoa se transformarem numa colônia de comiseração.
Ninguém está pronto para perder alguém, acreditem, mesmo que a pessoa em questão esteja com uma doença terminal. Ninguém sabe, ao certo, como seria uma forma ideal de lidar com a morte de alguém que amamos.
Mas, biologicamente falando, 50% do meu DNA veio dela, é dela. Quando me olho no espelho, a reconheço e, consciente disso, de que sou parte dela, me vejo como a cura que ela não teve, como a compreensão que lhe foi negada, como a realização dos sonhos que lhe foram tirados por uma vida submersa numa realidade dolorosa e trágica.
A morte da minha mãe me ensinou também, é isso que as pessoas não veem. Quando a morte se apresenta, a vida se resplandece. Aconteceu isso quando o Bento nasceu, a minha vida se iluminou, meus pensamentos ganharam novas cores. E não exatamente porque ele nasceu, mas porque eu pude ver de forma mais densa e interna como se dá a construção desse nível de amor. E, diante da construção desta percepção, eu prefiro ter sentido tudo que senti quando ela partiu do que submetê-la a perder a mim ou um de meus irmãos.
Eu não imagino perder meu filho, não desejaria para ninguém tamanha dor, e é claro que eu desejaria acompanhar minha mãe numa velhice longa e saudável. Mas não foi assim, foi como foi, e as coisas que foram não podem ser mudadas, quiçá nunca compreendidas.
Eu sorrio largo e falo alto, e reconheço minha história, minhas dores, e falo sobre isso hoje sem chorar, e continuo andando porque me recuso a permitir que a vida me derrube, que o mundo, injusto e desigual, determine meu lugar dentro de estatísticas. Confrontando todos os dados, resisto, e me faço diferente do que o óbvio me apresenta.
Lembrar da minha mãe é, sobretudo, observar o meu exemplo mais claro e próximo de coragem e doçura. Lembrá-la, lembrar sua partida, não me dói como outrora. Embora às vezes eu pense na dor que ela sentiu, embora outras vezes eu lamente profundamente não ter sabido antes sobre o que sei agora, só sei que a elevação que ela me proporcionou, para enxergar tudo como vejo hoje, claramente, é o maior presente que cultivo.
A dor por tê-la perdido nunca será maior do que a alegria de ter morado em seu corpo, me alimentado de seu leite, aprendido com suas mãos.
O coração que bate no meu peito, já bateu dentro dela, junto dela, em uníssono.
Ela sou eu e enquanto eu viver, ela nunca vai morrer.
As coisas importantes seguem vivas dentro de nós.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista