“Torna duelo em raízes” (Ekundayo).
Robson Beatriz é um artista plástico, pinta de forma extraordinária. Sua obra predileta é um preto velho que ele carrega como tela de fundo de seu celular. Foi puxando papo numa consulta, que descobri suas aptidões para as telas pintadas a óleo.
Sorriso largo, boa conversa, a cada consulta temos estreitado os nossos laços. Outro dia perguntei sobre sua ancestralidade e a origem de seu sobrenome. Ele me explicou que esse foi o nome de batismo católico de sua primeira ancestral a vir para o Brasil, uma iorubá traficada num navio negreiro.
Antes do desembarque, padres batizavam os povos vindos da África para que não pisassem em terras brasileiras com suas “almas pagãs”. Aqui deveriam usar novos nomes de brancos e cultuar sua fé. Os filhos de Beatriz receberam esse sobrenome fruto de uma violência religiosa.
Penso na minha ancestralidade e nos meus privilégios. Sou neta de portuguesa e bisneta de italianos. Minha avó portuguesa, vó Linda, sempre nos narrava suas origens e sempre soubemos de onde viemos. Mas minha família italiana não, as informações já não são tão claras.
Tenho um tio avô que cultiva a árvore genealógica e conseguiu chegar a informações bastante remotas de nossos antepassados italianos. Esta semana minha avó Tata me contou com muito entusiasmo a história de sua avó italiana, minha tataravó Leonilde, porque uma parte de minha família está avançando nos documentos de cidadania europeia.
Robson Beatriz pouco sabe de sua ancestralidade e não tem documentos para lhe auxiliar, desde que Ruy Barbosa, enquanto ministro da Fazenda, mandou queimar, em 1890, todos os documentos referentes à escravidão.
Beatriz, a mulher que teve sua vida raptada e violentada, tinha outro nome, outras origens. Seu nome provavelmente tinha algum significado e dizia muito sobre ela, sobre sua personalidade, sobre sua cultura e sobre a espiritualidade de seu povo.
Em duas leituras recentes, “A Queda do Céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, e no “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, refleti como nós, mulheres e homens brancos, distribuímos nomes a esmo sem nenhuma conexão transcendente.
Na cultura dos Yanomami, por exemplo, quem dá o nome para as crianças são os familiares de acordo com suas características e aptidões. A esposa de Davi Kopenawa se chama Rããsi, “Doentia”, porque ficava enferma a maior parte do tempo, há também o Mamoki prei que é alguém que ficou com os “Olhos Grandes”.
Assim como no livro de Ana Maria Gonçalves, a protagonista se chama Kehinde, porque era uma ibêji (gêmea) e nasceu por último, e sua irmã por ter nascido primeiro se chamava Taiwo. Quantas histórias perdidas representadas na imposição de Beatriz. Muito diferente da doce Beatriz construída por Chico Buarque.
Há um mês conheci a senhora Marcia Aparecida. E esse é o seu nome completo, uma mulher sem sobrenome. Isso me chamou muito a atenção e quis entender melhor sua história e a relaciono com a violência e descaso dados às minorias desprivilegiadas.
Marcia Aparecida era filha de João Vitor Gabriel e neta de Vitor Rafael. Três gerações sem nenhuma clara determinação de pertencimento. Sem aquela marca registrada de conexão que, para muitos, é até um legado.
Para deixar a história ainda mais complexa, até a vida adulta ela não sabia que não tinha sobrenome, já que em sua matrícula da escola constava que ela era Marcia Aparecida Gabriel. Foi assim que o pai de seus filhos registrou a filiação deles na certidão de nascimento.
Quando Marcia foi tirar sua carteira de identidade e carteira de trabalho, tendo na ocasião mais de vinte anos, soube que seu nome completo não tinha o Gabriel. Isso trouxe diversos problemas para ela, incluindo questões relacionadas aos documentos de seus filhos.
Há anos, no interior de Minas, procurou advogados, mas não conseguiu solucionar o problema até hoje. Diz, em tom de brincadeira, que para a lei brasileira, seus filhos não são seus.
O que significa não ter um sobrenome? É perder a sensação de pertencimento? Não consigo também não pensar que a maior parte das figuras de poder, em especial no passado, tinha nomes enormes, rebuscados e cheios de apologias às famílias importantes. Ser somente Marcia Aparecida é ter uma vida que, de alguma forma, favorece a permanecer na invisibilidade?
Conversando com minha companheira de equipe assistente social, ela me diz que Marcia Aparecida pode mesmo ter problemas sérios após sua morte, em especial relacionados a patrimônios, inventário.
Então, um dos planos de cuidados para Marcia será, além de tratar de seu câncer, assegurar que ela possa ser assessorada neste processo. O cuidado paliativo lida com a vida buscando prevenção e alívio do sofrimento que ocorre em diversas esferas, não somente a física.
Ser profissional de saúde me faz acessar diversas questões das pessoas que me procuram. Acolho muito as demandas físicas, porque todos que acompanham comigo têm ou tiveram câncer, mas acontecimentos do cotidiano são narrados a cada encontro. Pequenos testemunhos que me conectam às suas vidas e me tiram do meu lugar, ampliam minha visão do universo e ampliam meu repertório sobre a vida. Hoje, sou um pouco de cada um que cruzou meu caminho.
E o que me encanta também é poder circular em diversos mundos. Trato de pessoas das mais diversas classes sociais, de diversos lugares e culturas. Escuto histórias que me levam a lugares incomuns e me enchem de identidade. A cada pessoa que atendo, aprendo mais sobre a vida e sobre a história do mundo.
Hoje, sou mistura, uma construção das sequências de episódios vividos com o tempero dos que passaram por mim e pelos que me narraram suas vidas, medos e alegrias. A cada encontro sou uma nova Juliana que me leva a um novo lugar. Robson Beatriz e Marcia Aparecida me fizeram dobrar mais uma esquina esta semana, e sigo na esperança que eles consigam tornar seus duelos em raízes.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista