Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Rose (*) tinha 60 anos quando descobriu um câncer de mama avançado com metástase óssea para coluna e fratura do fêmur esquerdo. Fisicamente vinha debilitada devido a uma hepatite C de longa data, que tinha evoluído para uma irreversível cirrose. Esta a deixava com anemia e com plaquetas baixas, necessitando de transfusões recorrentes. Apresentava, então, enfermidades incuráveis e desafiadoras, que foram controladas com os tratamentos possíveis. Chegou um momento em que perdeu a capacidade de caminhar, ficou acamada. Tinha dores importantes, necessitando de analgésicos fortes para controle álgico. 

O processo de adoecimento foi lento. A caminhada desde o aparecimento da hepatite na década de oitenta e do câncer até a sua morte demorou anos. Os tratamentos conseguiram prolongar o tempo e melhorar a qualidade de vida, mas há um determinado momento em que o desequilíbrio é inevitável e vêm as falências orgânicas. Como ainda não temos a fórmula da imortalidade, Rose faleceu em 2019, devido ao avanço de suas doenças.

Nos últimos dias de vida, houve um grave comprometimento de sua capacidade respiratória. Por isso, ela foi encaminhada para Unidade de Terapia Intensiva (UTI), sendo entubada e faleceu ligada a um aparelho de ventilação mecânica. As últimas horas de vida foram longe de seus familiares, com um tubo na garganta e sedada. 

Eu já pensei que o caminho natural de quem está nos últimos dias de vida era a UTI. Já tive a opinião de que, se a pessoa está morrendo, deve ser entubada e reanimada. Até que o cuidado paliativo me ensinou sobre distanásia. Você já ouviu falar?

Distanásia é o prolongamento artificial da vida, usando recursos invasivos. Mas não é tanto o prolongamento da vida, e sim o prolongamento do processo de morte. É o aumento das horas ou dos dias (às vezes até semanas) que a pessoa vai ficar com dispositivos sustentando uma vida que, por si só, não se mantém mais. Em geral, esses dispositivos não são capazes de reverter situações de corpos com falências de sistemas vitais e inevitavelmente ocorre a morte. 

No Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde, temos cerca de 72% dos óbitos por doenças crônicas. As doenças crônicas são aquelas de progressão lenta e longa duração, que muitas vezes levamos por toda a vida. Podem ser silenciosas ou sintomáticas, comprometendo a qualidade de vida. Nos dois casos, representam risco para o paciente. Entre as principais estão: doenças cardiovasculares (hipertensão, acidente vascular encefálico), doenças respiratórias (bronquite, asma, DPOC), câncer e doenças metabólicas (obesidade, diabetes, dislipidemia).

Pode-se então dizer que a maior parte das mortes no Brasil é anunciada, e muitas delas irreversíveis. Seriam decorrentes das doenças crônicas que seguiram seu curso natural mesmo com o tratamento. Diferente de um quadro de infecção aguda ou de um acidente, nas cronicidades aparelhos artificiais têm menor capacidade de resolver. Pense em um corpo que entra em desarmonia após 20 anos de um problema de coração, que já está grande e enfraquecido. Como um tratamento vai reverter isso? Os tratamentos conseguem modificar o curso da enfermidade, conseguem melhorar a qualidade de vida, mas não conseguem fazer esse coração ficar saudável.

O Brasil, até a década de oitenta, tinha como principal causa de morte doenças infectocontagiosas, como diarreia, hanseníase, tuberculose, chagas. Desde a conquista da reforma sanitária e da estruturação do sistema de vigilância em parceira com o Sistema Único de Saúde (SUS) houve uma transição epidemiológica e, hoje, temos uma tripla carga de doenças: doença infecciosa, doença crônica e causas externas (violência e acidentes de trânsito).

Com a pandemia do coronavírus e o pico de infecções coletivas, estamos passando por um problema grave, necessitando de leitos de retaguarda de hospitais, em especial leitos de UTI. O problema é que já trabalhamos com um sistema de saúde superlotado. O Brasil tem 14.800 leitos de UTI no SUS, com 95% de ocupação, ou seja, 14 mil leitos já estão ocupados. E muitas vezes por quem não deveria estar lá.

Precisamos, então, refletir bem as indicações de medidas invasivas e entender que elas têm, sim, seu valor e são essenciais para situações que são reversíveis, como o caso da pneumopatia secundária ao Covid-19.

Isso não significa que os portadores de doenças crônicas avançadas serão abandonados com falta de ar e ficarão sofrendo até o dia de sua morte. Para sintomas físicos há tratamentos medicamentosos e não medicamentosos. Mesmo porque, intubação não tira a sensação de falta de ar de ninguém, e nem a UTI é analgésica. Médicos paliativistas são profissionais especialistas em controlar sintomas junto com sua equipe multiprofissional. Cada doença crônica tem uma evolução diferente, com necessidades especiais, que serão prontamente atendidas. Tudo nas suas devidas proporcionalidades, respeitando os desejos da pessoa e de seus familiares. 

O cuidado paliativo preza pela ortotanásia, que é a morte com dignidade no tempo certo. Não adiantamos e nem adiamos a morte, estamos ao lado da pessoa em todas as suas fases de doença, em especial na fase mais dura em que os sintomas físicos estão mais exacerbados. E faremos de tudo para oferecer um sistema de suporte que possibilite ao paciente viver tão ativamente quanto possível até o momento de sua morte.

Rose, apesar de ter falecido em uma UTI, morreu sem nenhum analgésico de horário, mesmo tendo dor crônica. Estava ligada a um aparelho mecânico que não salvou sua vida e permaneceu seus últimos dias longe das filhas. Para mim, isso não é uma influência positiva no curso do adoecimento e, sim, uma violência contra um corpo desprotegido. Cuidar também é proteger, e precisamos sempre zelar por isso.

(*) nome fictício