(…) “amar eu posso até a hora de morrer.
Amar não acaba.
É como se o mundo estivesse a minha espera
E eu vou ao encontro do que me espera”.
(Clarice Lispector).
“Juliana, me ajude a atravessar a ponte?”, ouvi numa segunda-feira de manhã no trabalho.
Magda, professora aposentada, me fez essa pergunta na consulta em que soubemos que seu câncer de pulmão havia progredido. Me fez outro pedido: “E não deixe de cuidar da minha filha”, referência à Greice que também acompanha comigo por um câncer de mama.
Ontem levei minhas sobrinhas na praia. Elas quiseram brincar no parquinho da areia de Santos. A Olívia, com a habilidade dos nove anos, já estava fazendo acrobacias e me pedindo para filmar porque queria reproduzir os feitos aos seus pais. Estelinha, prestes a fazer quatro anos, tentava imitar a irmã e eu passei o tempo todo a escorando, atenta para evitar acidentes. Ajudei-a a atravessar pontes por alguns momentos.
Qual a diferença entre essas pontes? Me peguei refletindo. Pensando que o meu auxílio deve ser o mesmo em todos os casos, oferecendo amparo, proteção e atenção.
O que divide o mundo dos vivos e dos mortos? Uma ponte? Um barco? Hades é o deus grego dos mortos e Caronte é seu barqueiro que leva as almas recém-chegadas ao outro lado do rio, no limite da terra onde o sol se põe e o oceano começa. O mundo subterrâneo era rodeado por pântanos com águas lamacentas. Quem podia, pagava com moedas a fim de trilhar o “bom caminho” para o céu. Por isso, a tradição do rito de enterrar mortos com uma moeda sobre a boca.
Maria Laura acompanhava comigo por um câncer grave que não lhe causava tanta angústia quanto o suicídio do neto de vinte um anos ocorrido no ano anterior. Nesses doze meses ela visitava muito o cômodo incendiado e não tirava nada do lugar, como se essas cinzas tivessem também um valor espiritual. Me dizia que ninguém destrata a memória de um ente querido sem consequências.
Ela sentia dores no peito, mas dizia que era a saudade. Referia falta de ar que associava a um furdunço pelos sentimentos acumulados. Não dormia à noite porque muitas vezes sonhava com o Ivan de camisa vermelha pedindo ajuda. Costumava dizer que ele tinha uma personalidade “Nelson Rodrigues” porque era intenso e um tanto dramático. E sentia culpa por não ter previsto seu último ato. Perto de sua morte, já mais debilitada pela enfermidade avançada, referia não ter medo do lado de lá porque pediria ao barqueiro para deixá-la onde o neto estivesse, mesmo que não fosse no céu. Mas, tinha pavor de morrer com falta de ar. Fizemos um ajuste de medicações tentando garantir que sua travessia fosse em águas calmas, com uma brisa daquelas que acolhem e nos dão a sensação de que a vida tem seu ciclo natural.
Há ainda quem diga que entre os mundos dos vivos e dos mortos tem uma plataforma de viagem. O médico paliativista escocês Derek Doyle se denominava como o amigo da última despedida. Ele escreveu o livro “Bilhete de Plataforma: vivências em cuidados paliativos”, onde narra quarenta anos de histórias sobre pessoas que cuidou. O título é uma referência aos viajantes de trem na Europa que poderiam ter um companheiro até o último instante da saída do vagão, desejando votos de uma boa viagem. Esse momentos são de emoção e, por que não, de lágrimas? Sempre é permitido chorar nas despedidas. Doyle estava lá para auxiliar a passagem a uma outra dimensão da vida.
Fui a companheira de viagem da minha vó Linda, segurei seu bilhete até o último suspiro, e estávamos de mãos dadas na partida de seu trem.
Essa peregrinação já tinha sido planejada por ela há muito tempo, desde que fez sessenta anos, mas seu processo de adoecimento se deu aos oitenta e oito anos. Então, ela teve vinte e oito anos para fazer suas malas, organizar suas prioridades, traçar rotas e expressar seus desejos.
Dois meses antes da partida, seu corpo começou a sinalizar mudanças expressivas: perdeu a independência, ficou sem apetite e emagreceu acentuadamente. Tinha dores leves a moderadas que respondiam bem a analgésicos que faziam parte do uso diário. E mergulhou profundamente em reflexões partilhando com muita coragem seus desejos de como ser cuidada durante o processo de morte e no pós-morte.
Nossa família, apesar da tristeza, assegurou o valor da palavra que, para ela, era mais valiosa do que qualquer mercadoria. Não que ela não tenha tido medo, mas compreendeu o curso natural e compartilhou todas as decisões. Sua entrada no vagão ocorreu de forma bem serena às treze horas de uma segunda-feira, vinte de julho de 2015, num dia ensolarado e fresco de inverno.
Para quem fica na plataforma, não é fácil ver o trem partir. Uma sensação de vazio nos arrebata, uma contradição razoável de emoções. Parece que algo falta, uma parte de mim, uma parte da minha história. Há momentos definidores da vida e do destino. Volto para casa pensando nas delicadezas do dia a dia, nas possibilidades que a vida nos oferece e penso na poeta Clarice Lispector que nos relembra: (…)”o tempo corre, o tempo é curto: preciso me apressar, mas ao mesmo tempo viver como se esta minha vida fosse eterna” (…).
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista