Cá estou, na Consolação, lado oposto do Paraíso. Decidi fazer uma leitura metódica das grandes epopeias. Atravessei com galhardia a primeira de todas, “Odisseia”, encarei a “Eneida”, de Virgílio, voltei a Homero, li a “Ilíada”, essa ode ao ódio, enfrentei os mares nunca dantes navegados dos “Lusíadas”, de Camões, e agora me bato com o “Paraíso Perdido”, de John Milton, epopeia inglesa do século XVII, que revisita o tema do Gênese, e da queda do Homem. Seu grande herói, contudo, não é Adão, nem o Criador, nem Eva, nem Miguel. Satã é o grande personagem do poema épico de Milton.
Todo grande autor impõe a seu alter ego um vilão sublime. Não é raro, todavia, a culpa se abater sobre o escritor e o vilão morrer, se dar muito mal, ou, o que é pior, se converter. Iago de Shakespeare, embora siga sendo deliciosamente mau, acaba muito mal no fim do “Otelo”.
A grande maioria dos vilões morre, mormente nestes tempos de telenovela, em que é dado ao público opinar no final da obra – vingança coletiva. O vilão de Chesterton se converteu, por obra do herói, Padre Brown, e tornou-se um grande investigador de polícia. O autor era um cristão empedernido, precisava se redimir, redimindo seu gênio. Chesterton estava mais em Flambeau, o criminoso convertido, que no padre.
Processo idêntico ocorre em Balzac, que precisou converter o malvado Vautrin, convertendo-se a si próprio. Milton, embora religioso, é tão convicto literariamente que seu Satã, sua projeção malvada, segue o mesmo do início ao fim, porque o Satã histórico é essencialmente mau – por isso o Homem dele tanto se encanta.
Devo dizer que este Satã de Milton me encanta, a mim que por necessidade sou cristão e busco me distanciar o quanto posso do Satã histórico. Imbuído desse satanismo literário dos infernos tive eu essa noite um sonho bastante curioso, que passo a relatar aos santistas:
Expulso do meu paraíso por insistir em provar da árvore do conhecimento, fui remetido a morar num edifício horroroso, cheio de estátuas infames e portais de pés de pau-brasil abatidos clandestinamente. Satã era o empreendedor, a criatura que me financiou em infinitas prestações a compra de um apartamento naquele prédio. Me veio pessoalmente visitar a mostrar as maravilhas de seu empreendimento imobiliário que era nada menos que o próprio inferno.
Nosso encontro deu-se numa das madrugadas bandidas dessa vida errada. Chegava de percepção alterada por força do mix álcool/drogas lícitas, ao abrir a porta do elevador que percorria os vinte e tantos andares, lá estava ele.
Sentado, em posição de lótus, qual um iogue, um dedo apontando pra baixo e outro pro céu, chifres retorcidos e cavanhaque insculpidos numa cabeça caprina. Era ele, já o havia visto em figuras, na carta XV do tarot, em rituais dos quais havia participado onde fiz coisas abomináveis, deitei em caixões de defunto, queimei crucifixos, chicoteei imagens de santos. Era ele, sua cabeça caprina e seus pés de cascos, era ele, Baphomet, o Bode de Mendes. Interpelou-me num inusitado sotaque:
“Como estás, pá?”.
Sem forças, comandado por uma energia de imantação demoníaca, logo me vi no elevador com o monstro, que tocou direto pra garagem, no subsolo, no orco. Descemos num lúgubre sítio, imundo, milhares de canos de esgoto cortando o teto, uma profusão de carros brancos tipo furgão, deste tipo horroroso que inunda as ruas de Santos, um atochando a saída do outro.
Pertenciam os veículos aos condenados àquele inferno. Vez por outra se matavam na garagem quando o tamanho de um obstruía a ignorância de outro. Sem embargo, cada unidade residencial tinha pelo menos quatro carros numa vaga demarcada minúscula. Achavam bonito ter carro grande.
Dos canos, volta e meia passava um jorro líquido onde se percebiam chocar nas paredes do PVC algo sólido, as badalhocas dos condenados, os pequenos burgueses que habitavam o “Hell Inn”, nome do empreendimento satânico.
Baphomet me contou que ali era o último círculo de seu inferno condominial. Os condenados eram milhares de almas que havíamos (eu, inclusive) perdido o direito a uma cidade humana, solidária e integrativa, e que agora nos víamos num universo de gente tosca, incapaz de dar bom dia ao porteiro, o qual, aliás, era obrigado nos chamar “doutores”.
“Vamos a subire”.
Levou-me a um ambiente, no mezanino, chamado espaço gurmê. Disse-me que ali era possível saborear picanhas gordurosíssimas com cerveja quente e ouvir música de boa qualidade. Perguntado por mim que música os condenados ouviam, pra minha surpresa respondeu.
“Ouvem por demais dois gajos, João Bosco e Vinicius”.
Cheguei a pensar que era uma fantasia de socialistas ressentidos essa ideia de que a classe emergente é inculta e grosseira. Ouviam bossa nova, pô. Baphomet leu meus pensamentos e, num sorriso sarcástico, fez surgir na tela de uma TV de plasma uma festa bizarra, com os condenados bêbados em alegre tertúlia, arrotando suas viagens à Disney e Miami e ouvindo um sertanejo universitário dos infernos, cantado por um João Bosco e um Vinícius de chapéus cáuntri, que nada tinham a ver com meus ídolos d’outrora. Aquela gente tinha um gosto musical absurdo, dali derivavam pro pagode e prum poperô louco. No fim, todos bêbados, se atiravam na piscina, uns deglutindo a craca da pele dos outros.
Voltados ao elevador, eu e o Bode de Mendes seguimos a subire. Passamos pelo kids-place, pelo lounge, pelo bistrô, por terraços também gurmês e, por fim, depois de conhecer as coberturas, destinadas aos condenados de pena mais severa, chegamos ao solarium. Do alto, mirando aquele festival de atrocidades, Baphomet ia contando das desgraças que aprontou no paraíso por mim perdido.
“Olha lá, gajo, aqueles terrenos todos eu os comprai”.
“Que terrenos, só vejo sobrados antigos e clubes”.
“Não aprendeste a ver com olhos de verdade, pá. Se enxergas bem, derrubada aquela porcaria, vês ali terrenos”.
“Porque o senhor não demole aqueles caixotes feios e abandonados? Precisa escolher as construções mais bonitas? Quer mesmo desgraçar a memória da cidade?”.
“D’pois da r’volução dos Cravos, quando fui banido do Céu pelo Criador, vim aqui para implantar meu império”.
Eu, então, me dei conta do horror que é cair no inferno, ser condenado e perder todas as esperanças na porta do condomínio.
A Cidade de Deus, de que falou Santo Agostinho, eu e meus parceiros de condenação a havíamos perdido para sempre. Uma sucessão de criptas suspensas, cemitérios verticais ornados de estátuas bizarras, prédios imensos vazios a lavar dinheiro da miséria africana, minas de diamante e minas explosivas a mutilar crianças negras, dentes de elefantes mortos, contâineres de muamba, lojas de shopping vazias de gente e cheias de quadros de Romero Brito, lojas de grife vendendo produtos de escravos bolivianos pras madames nouveaux-riches, a cidade tinha virado uma grande lavanderia, nenhum dos seus empreendimentos se justificava senão por sacanagem.
Viveríamos nossa pena no “Hell Inn”, ou nalgum outro prédio satânico de uma Santos sepultada numa arquitetura de gosto duvidoso, em meio à fila de carros imobilizados em ruas estreitas e canais aterrados.
O terrível de tudo era o poder de sedução de Satã. Feito o personagem de Milton, ele havia ludibriado a minha Eva, num fôlder-maçã que prometia maravilhas a quem adquirisse uma unidade no “Hell Inn”, ele convenceu minha senhora a me convencer a ser um feliz proprietário num seguro empreendimento de espaços inteligentes e reduzidos, ao módico custo do meu suor até a morte, com direito a enfiar um monte de carros espalhafatosos na garagem e ouvir música de boa qualidade em companhia de gente bonita e sofisticada.
Acordei do pesadelo suando e gritando, e me agarrei no crucifixo do terço que mantenho penduradinho em cima da cama, cama esta que tem sido palco de tantas perfídias, oh, meu Senhor, prometo me redimir, eu não quero ir pro inferno, eu quero a Cidade de Deus, a de Santo Agostinho, por favor, por misericórdia.