Foto: Arquivo Pessoal

Uma de minhas primeiras lembranças de um campo de futebol é de uma partida do Bauru Atlético Clube contra adversário indefinido que fui ver criança com meu pai e meu irmão.

Foi no singelo Estádio Antônio Garcia, nas arquibancadas de concreto cobertas. Comemos amendoim e tomamos sorvete.

A certa altura, meu pai revoltado com marcação do juiz desceu até o alambrado, pegou meio tijolo e atirou para dentro do campo.

Eu me lembro vagamente da confusão que se seguiu.

O BAC era terra de Dondinho, pai de Pelé, o fabuloso cabeceador trazido de Minas Gerais com a garantia de um cargo público em Bauru. A esposa, Dona Celeste, era professora.

Por conta dos gols de cabeça de Dondinho, o BAC foi campeão do Interior de 1946, batendo o Cruzeiro da cidade de mesmo nome por 4 a 1, no início de 1947.

Dondinho teve a fabulosa marca de 137 gols marcados em 199 partidas disputadas pelo BAC.

No BAC, Pelé era “apenas” filho do Dondinho.

A carteirinha de Pelé – Foto: Reprodução

Quando eu aprendi a nadar, nas recém-inauguradas piscinas do BAC, no final dos anos 60, foi com muita alegria, mas uma pontinha de tristeza.

As piscinas foram construídas em pleno campo de futebol, sinalizando que o passado de grandes clássicos contra o outro time de Bauru, o Noroeste, ficariam no passado.

Quando não estava atirando tijolo em juiz de futebol, meu pai era militante comunista e adorador dos esportes.

Era fã de Wlamir Marques, bicampeão mundial de basquete, o primeiro título em 1959, no Chile. Naquela época meu pai sintonizava com grande dificuldade o imenso rádio que ficava na sala de casa, caçando partidas da seleção de basquete.

Em 1963, o Brasil foi campeão mundial no Rio de Janeiro, batendo a Iugoslávia na final, enquanto a União Soviética derrotou os Estados Unidos na disputa pelo bronze.

A derrota dos ianques foi duplamente comemorada em casa.

Nasci num dia de tragédia em Bauru. Enquanto dona Lourdes foi levada às pressas para a Beneficência Portuguesa, para ter um filho prematuro, a cidade se preparava para receber um timaço: o São Paulo, campeão paulista do ano anterior.

Meu primo Arnaldo, que morava conosco, era tricolor fanático e foi ao estádio do Noroeste com meu pai. Porém, as arquibancadas de madeira pegaram fogo e o jogo teve de ser adiado.

Minha conversão ao Santos FC se deu também por motivos estéticos. Guardávamos em casa as edições da revista Cruzeiro que registravam o bicampeonato mundial.

Eu ficava impressionado com as fotos, especialmente daqueles homens pretos vestindo camisetas brancas de manga comprida e conquistando o mundo.

Vi Pelé em campo como torcedor uma única vez no Brasil, levado pelo meu pai para assistir Santos x Portuguesa de Desportos no Pacaembu, pelo Campeonato Paulista.

Foi em novembro de 1973, quando o Santos ganhou de virada, com dois de Pelé. O último gol valeu a viagem: ele recebeu uma bola alta, matou no peito enquanto subia e bateu de sem pulo no ângulo do goleiro Zecão.

Eu era, então, um jovem auxiliar de redação do Jornal da Cidade de Bauru, onde comecei a trabalhar aos 12 anos de idade.

Em 15 de março de 1975, voltei a ver Pelé, mas desta vez como repórter de campo.

Ele foi a Bauru fazer sua despedida do BAC. De manhã, recebeu o título de Cidadão Bauruense. Em seguida, foi participar do jogo-despedida na metade que havia sobrado do Estádio Antônio Garcia.

Uma das rádios locais, empolgada com o evento, formou uma equipe de esportes de última hora só para transmitir a partida.

Eu, como repórter de campo!

Em 1970, como toda criança de Bauru, corri pelas ruas da cidade celebrando quando a Seleção Brasileira ganhou o tricampeonato no México.

Naquela Copa, descobri a genialidade do Pelé nos gols que ele não fez.

Contra a Checoslováquia, Pelé viu o goleiro Viktor adiantado e tentou acertar o gol com um chute de 60 metros de distância. Passou perto.

Contra o Uruguai, deu um desconcertante drible de corpo no goleiro Mazurkiewicz. Sem tocar na bola, deu a volta no goleiro e errou o gol por pouco.

Coisa de gênio!

Em Bauru, como repórter de campo, vi Pelé fazer o gol que perdeu no México.

Lançado, não tocou na bola. Confuso, o goleiro congelou. Pelé deu a volta nele e desta vez acertou, para delírio do público local.

A proposta para que Pelé se tornasse cidadão bauruense foi apresentada originalmente em 1962.

Mas o craque, requisitado em todo o planeta, só teve tempo de recebê-la 13 anos depois, nas breves horas em que passou na cidade.

Propagado pela mídia, o suposto mal-estar entre Pelé e Bauru ganhou manchetes depois que ele morreu, em 29 de dezembro de 2022.

Há muito o que explicar a respeito, o que farei nas próximas colunas.