“O que eu não sei dizer é mais importante do que o que eu digo”
(Clarice Lispector).
Trinta e um de dezembro de 2020, uma noite de ano-novo diferente. Seria o primeiro réveillon que passaríamos em frente à praia no novo apartamento em que minha mãe e avó estão morando. O primeiro também que a família passou mais separada. Meus sobrinhos não estavam conosco, nos distanciamos para nos proteger.
Às 23h15 saí da casa da minha mãe e peguei a ciclovia para comemorar a virada com poucas pessoas queridas. Andei pela orla da praia do canal 6 até o canal 2 e a areia de Santos estava absolutamente vazia. No calçadão também havia poucas pessoas. Pedalei observando o silêncio e o vazio. Me senti num livro do Saramago, sendo protagonista de uma obra como o “Ensaio Sobre a Cegueira”, me lembrei de uma fala dele ao lançar o livro que dizia:
“Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”. Pensando no quanto não somos bons, pedalava. Parecia até o fim do mundo.
Se o ano-novo foi desafiador para mim, quem dirá para Cássia e Teodora, esposa e filha, respectivamente, de alguém que está na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Roberto internou para fazer um procedimento e teve uma complicação infecciosa tendo que ir para a UTI para medidas mais invasivas.
Inicialmente era esperado que os tratamentos médicos possibilitassem sua recuperação, ao menos parcialmente. Mas seu corpo não respondeu conforme as expectativas, possivelmente por ter como antecedente oito anos de diversas modalidades de quimioterapia.
Portanto, na noite de réveillon ele estava intubado, sedado, ligado a aparelhos, com medicações para manter a pressão e fazendo hemodiálise. Sua família, diante da sua piora, teve que desconstruir as expectativas iniciais, entender os novos fatos e eventos que dinamicamente ocorriam e ainda elaborar os desfechos que se mostravam cada vez mais sombrios.
Numa de nossas conversas, Cássia e Teodora me disseram que, para elas, estava muito difícil lidar com aquela situação, e que não conseguiam praticar nada de autocuidado e nem de prazer. “Estar aqui com ele nessa situação é ruim, em casa é ruim, comer é ruim e dormir é impossível”.
Ambas carregavam expressões de tristeza e, mais ainda, de desamparo. Daqueles que nada do que se diga possa preencher, talvez um belo abraço poderia acolher minimamente. Mas assim como a praia vazia na virada, precisávamos manter a distância.
Por isso, fui tentando passar esse carinho por palavras, por afeto, através de histórias compartilhadas. Só as palavras podem acalentar a dor, o diálogo aqui se mostra muito importante e deve ser feito com empatia e franqueza. Técnicas de comunicação sugerem, dentre outras coisas, que as conversas sejam em ambientes calmos, silenciosos, com privacidade e que se use linguajar fácil, evitando expressões mais duras como o tão temido “não há mais nada para fazer”.
Acompanhando a vivência dessas duas mulheres, sem dúvida, posso dizer que a recomendação foi feita às avessas. Até que ponto a linguagem influencia o pensamento e em que medida esse pensamento pode criar e elaborar as coisas?
Entrei na UTI para vê-lo e os sons do ambiente ao redor mudaram. O som é protagonizado por aparelhos que ritmicamente têm uma pulsação, a mesma do corpo de cada uma das pessoas monitorizadas. Tuc tuc tuc… Algumas estão com um corpo em um andamento mais lento como “Moto Contínuo” de Chico Buarque. Outras, com um andamento dinâmico que se assemelha ao “Jogo de Roda”, interpretado pela Elis Regina.
Há ainda as sem ritmo bem definido, numa música contemporânea dissonante que diz muito sobre nosso tempo: muitos de nós morremos sozinhos e monitorizados na UTI.
Diferente do que observamos em alguns filmes, em que vemos a morte ocorrendo com uma bela e harmoniosa trilha sonora, em um ambiente com meia luz, com a família e os afetos por perto, morremos com apitos, sozinhos e com a luz acesa. Além disso, com o risco de ter uma televisão ligada contribuindo para a paisagem sonora ser mais hostil.
Roberto estava num quarto mais reservado com duas camas dentro da UTI. Ao seu lado, outro senhor também intubado emitindo seus ritmos corporais pela tela do monitor. Parecia que seu corpo era música bem lenta. Ambos sedados, porque somente assim podemos suportar um tubo em nossa garganta.
Teodora e Cássia, já bastante cientes da situação, puxam uma oração, querem que Roberto fique em paz, que ele saiba que elas estão bem. Esse momento, que poderia ser belo e também determinante, disputa espaço sonoro com uma televisão ligada em um canal de reformas.
Mais um ruído, e a troco de quê? Quem de fato está assistindo esse programa? Será que estamos tão padronizados que não percebemos o nosso redor? Eu mesma não tinha me dado conta daquela televisão ligada até que Teodora me contou o ocorrido e olhei para o lado. No momento pensei: será que ela sempre esteve aqui?! Nessa hora estava passando um telejornal. A partir do momento que percebi a TV ligada, parece que seu som se tornou mais impossível de ser suportado. Mais um ruído conflitando com a dança corporal de cada um dos que estão deitados recebendo cuidados.
No último encontro que tive com ambas, na beira do leito em que Roberto estava, Cássia me contou que aprendeu um termo na medicina chamado “conspiração do silêncio”. Me contou a história de uma família que, diante do diagnóstico do câncer do patriarca, em momentos concomitantes, reservadamente, os filhos pediam ao médico que não contassem ao pai sobre a doença e o pai pedia ao mesmo médico que poupasse os filhos dessa notícia. Ambas as partes querendo proteger a outra do impacto dessa informação.
A conspiração do silêncio faz referência ao não dito, o silêncio que visa proteção. Cássia me disse que entendia essa atitude como uma atitude de amor. Assim que terminamos nossa visita na UTI, menos de dez minutos depois, Roberto faleceu. Parece que ele estava se mantendo ali para proteger seus amores de vê-lo partir. Pelo menos foi assim que interpretamos.
Após a morte dele, vem a difícil parte burocrática de cuidados com os documentos e cerimoniais. As assistências funerárias têm o objetivo de minimizar transtornos e dividir responsabilidades, mas enfrentar a entrevista com a empresa imediatamente após a morte de quem amamos é uma tarefa desafiadora. Acompanhei a entrevista presencial de Cássia com a operadora, foi mais ou menos assim:
– Vejo aqui na carteirinha dele, senhora, que o plano é empresarial.
– Sim, esse foi o plano que meu esposo fez.
– A família tem campa? O velório será onde?
– Não, nós da família não temos campa. Ainda não sabemos onde será o velório
(sons de teclados… silêncio)
– Sinto muito pela sua perda, senhora Cássia… Telefone de contato?
(sons de teclado)
– Olha, como disse, o plano dele é empresarial, então damos coroa de flores, café e biscoito.
– Ah, obrigada…
Uma conversa talvez corriqueira para quem trabalha, mas bastante delicada para quem perdeu alguém. Ainda mais depois de acompanhar doze dias de UTI, de noites mal dormidas, da tristeza da perda.
No dia seguinte, visitando outras pessoas hospitalizadas, me deparo com a irmã de uma moça gravemente doente internada por um tumor abdominal. Entro no quarto bem no momento em que ela canta uma oração chamada “Maria passa na frente” e ela entoa:
“Quem tem Maria como mãe
Tem sempre o amor de Jesus
Se sua fé prevalecer
Pra sempre vai te atender
Vou me entregar, vou confiar”
Não se passaram cinco minutos dessa cena, a paciente faleceu. A irmã entendeu que sua canção foi o caminho para que ela encontrasse a confiança de partir. Eu também acreditei nisso.
Voltei para casa bastante reflexiva, e com o coração partido, pensando de novo no Saramago que diz “se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia”. Cheguei em casa e troquei minhas roupas ensanguentadas.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista