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Luz das estrelas

Falar de aceitação da morte quando ela se torna inevitável não é uma derrota e sim um privilégio

Foto: Reprodução/Nasa

“As coisas assim a gente não pega nem abarca.

Cabem é no brilho da noite.

Aragem do sagrado.

Absolutas estrelas”.

(João Guimarães Rosa).

Ana Vênus nasceu num crepúsculo no mês de maio de 1957. Era um final de tarde espetacular com um vermelho-alaranjado que contrastava com as cores azul e magenta. Assim que a sua mãe lhe pegou nos braços o sol se pôs e apareceu um planeta brilhante no céu. Era Vênus. Parecia que o céu despertava naquele momento junto com a vida dela. Nem tudo dorme de noite… Em pouco tempo as estrelas e os planetas ofuscavam a terra como um carimbo postal. Na mitologia, Vênus é a deusa do amor e da beleza. Na astrologia, é o dom do amor, da compaixão, onde podemos nos apoiar e nos unir. Sendo assim, junto com ela nasceu e despertou poesia, inspiração e esperança.

Ana cresceu ouvindo narrativas sobre seus antepassados e sente que os conhece sem mesmo ter visto sequer uma fotografia de alguns deles. Sabe que a mãe da mãe de sua mãe nasceu no Rio de Janeiro no ano da abolição da escravatura e que foi a responsável pelo seu par de sobrancelhas bem desenhadas que ostenta. Também sabe que, neste final do século XIX, era um tempo de esperança em que clubes republicanos desenhavam um país de liberdade e de igualdade, mas que a realidade foi outra. Seus bisavós moravam num casarão no centro da cidade sem manutenção, que além de ser desapropriado foi o palco da morte de sua bisa num surto de febre amarela após um verão de chuvas torrenciais na ruas sem saneamento básico. O céu trouxe a água mais amarga que eles podiam experimentar.  E o volume das águas que jorrou dos olhos dos que a amavam talvez tenha sido até mais intenso.

Incapaz de seguir em frente em terras cariocas, a família se muda para outra cidade para recomeçar. Os começos são frescos e leves, presságios de renovação. E assim, perto do mesmo céu, mas de outro mar que a Ana Vênus nasceu. E com ela uma menina que aprendeu a se procurar a cada pôr do sol e, na companhia do avô, foram construindo momentos de intimidade aprendendo juntos sobre as estrelas. Chegou um certo ponto que eles estavam próximos e encantados e se presenteavam com os astros celestes. Em seu aniversário de quinze anos ela ganhou dele a estrela Prócion, que é a nona mais brilhante visível a olho nu no céu noturno, e uma carta que dizia:

“Minha amada neta, estarei sempre ao seu lado mesmo que seus olhos não possam mais me ver. Qualquer coisa olhe para a estrela Prócion e saberá como falar comigo”. 

Sua casa tinha um comprido quintal de terra com um cajueiro no fundo e ela gostava de subir na árvore e tentar tocar as nuvens. E assim como a árvore, a vida de Ana brotou e germinou frutos e sonhos apesar do confronto com o real. E ela renascia a cada decepção como o pé do cajueiro que resiste no quintal embelezando mesmo dias desimportantes. E nos galhos da sua história tinham dois casamentos, quatro filhos, três netos, uma carreira na educação infantil como professora de pré-escola, e ainda cuidadora de idosos aos finais de semana. Nas sombras tinha a violência doméstica que sofreu na sua primeira união, o desafio de cuidar da mãe com demência e o cansaço da extenuante carga de trabalho de uma mãe solo.

E foi numa noite chuvosa que Ana Vênus recebeu a notícia de seu adoecimento. Neste dia ventou muito, mas dentro dela as rajadas descortinaram a segurança e expuseram seus medos. Ela, acostumada a guardar sua dor para cuidar da dor alheia, se recolheu. Ouviu o som do silêncio. Chegando em casa, sob a chuva, foi para o pé do cajueiro. Procurou a estrela Prócion mas ela não estava à vista. Mas em instantes um pensamento despertou a lembrança de uma frase do seu avô que dizia “basta uma chuva que tudo se transforma, em 15 dias de solo encharcado floresce o verde”.

Ela começou o percurso do tratamento e nele não teve somente dor. Ela entendeu que sua principal característica era a persistência, e que seguir adiante ressignificando o processo era a única forma de ter dignidade. Seguiu e ouviu seu coração e aguçou sua intuição. Estar doente de alguma forma a deixou mais sã. E assim como todos os dias o sol se põe ou assim como a lua tem suas fases ela foi compreendendo os ritmos de regência da vida, e os ciclos de crescimento, florescimento, colheita e morte. Se deparou com a velocidade atordoante da vida, ou ainda seria da morte? Percebeu sua finitude e a proximidade da terminalidade. Falar de aceitação da morte quando ela se torna inevitável não é uma derrota e sim um privilégio.

Numa manhã de névoa baixa sem visibilidade Ana Vênus foi internada. Fez sua partida ao meio-dia, com o sol de inverno aquecendo os corações dos que lamentavam a saudade. Nesta noite, seus filhos fizeram uma fogueira no pé do cajueiro. Cantaram, dançaram, choraram até o amanhecer. Era lua nova e Vênus estava próxima olhando na direção noroeste logo antes do sol nascer. E Prócion brilhava como nunca.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.

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