(…)
“E assim, sem cobiça dos cofre luzente,
Eu vivo contente e feliz com a sorte,
Morando no campo, sem vê a cidade,
Cantando as verdade das coisas do Norte”.
(Patativa do Assaré).
Além da faixa fresca na zona da mata do litoral nordestino desdobra-se um Brasil mais profundo onde se encontram o agreste e o sertão. Lá, no semiárido, refresca quando o sol se esconde. As noites são frescas assim como as manhãs. Quando o dia se impõe o sol é ardente, mas aquece menos que os corações das mulheres e dos homens sertanejos.
A vegetação, rala, formada por pastos secos exprimem em seus troncos tortuosos a pobreza das chuvas. Escassez que é contrastante à abundância cultural de uma população que transborda história e coragem num bioma tátil.
A pele curtida arde como a brasa de uma primeira paixão. O anoitecer inebria com a fragrância das flores dos cactos xique-xique que florescem sob a luz da lua, assim como os nossos mais íntimos sonhos da madrugada. Poucas cores se destacam, como o vívido laranja dos pássaros concriz contrastando com a caatinga. Ca-a-tinga: vegetação branca que se organizou para condensar a umidade conservando água nas folhas fibrosas.
Seu Damião era um sertanejo do interior do Pernambuco. Nasceu na cidade que tem o apelido de “Berço Imortal da Poesia”: São José do Egito. Mas ele não era de versar em verbo e sim de versar a terra e os bichos. Seus ancestrais, os mais remotos provavelmente vindos da África, foram vaqueiros e entenderam as condições peculiares do sertão, prosperando dentro do que é possível à sua vida na roça. “Alguém combate a neve nos Estados Unidos? Pois… Não há como combater um fenômeno natural. E a nossa natureza é a da seca”, diria seu pai para incentivar o orgulho à identidade cultural e criar apesar da carência.
Nascido gêmeo ele e seu irmão, Cosme, viviam brincando nas terras rachadas e a qualquer chuva, mesmo que insipiente, aproveitavam para se banhar, nem que fosse numa poça de água. Brincavam de boi de osso. Pegavam piaba no poço.
Quando cresceu dedicou-se à criação de cabras e à produção de leite. Viveu bem apesar dos solavancos e das contradições. Em especial, quase se afogou na correnteza com a morte de seu irmão gêmeo. Os olhos de um que eram os do outro… Perdeu metade de seu espírito que, segundo a crença ioruba, era enorme demais para caber só no seu corpo. A extensão da vida de um se apoiava na do outro.
Nunca foi fácil viver, dói tanto que aperta o peito. Foi aí que rompeu com suas raízes sertanejas e se mudou para o litoral de São Paulo, acompanhando a trajetória pessoal de seu filho. Encontrava consolo na Mata Atlântica para acalmar as dores que latejavam na solidão inédita desde o ventre de sua mãe.
Quando seu Damião tinha oitenta anos ele veio tratar comigo devido a um câncer avançado e tinha acabado de receber também o diagnóstico de uma demência. Começou o tratamento com sua energia vital e memória ainda preservadas e me contava que na sua terra a morte era uma moça chamada Caetana. E que ele, diferente de todos, era amigo dela desde a morte de seus pais e irmão. Sonhava com esse reencontro. Confessou que chegou a seduzir a Caetana para um encontro fugaz, mas que desistiu do romance ao ver o sangue vermelho vivo vertendo das navalhas em seu pulso.
Por quase cinco anos compartilhamos vivências e, com o tempo, ele foi vivendo progressivamente cada vez mais num mundo onírico. Perguntava do irmão e contava histórias como a dos caramujos que caçavam e dos passarinhos que prendiam. Relembrava os dois como vaqueiros correndo no escasso matagal com os seus cavalos de pau. Nos últimos anos, enquanto o mundo progredia, ele rebobinava a fita de suas lembranças num passado saudoso, e vivia no protagonismo da sua fantasia particular.
No meio do ano de 2021, seu filho notou que ele estava mais cansado e com a sua respiração mais curta. Até pouco tempo atrás o seu pai tinha fôlego para andar e até para pedalar. Em exames, descobrimos metástases pulmonares e conversamos sobre as possibilidades que se apresentavam. Em reunião familiar, debatidos os valores de seu Damião, e a sua biografia, e começamos um tratamento para suavizar os sintomas, e focamos em atos ditos banais, mas que agora são raridades como um banho no chuveiro, dormir bem, repetir um prato apetitoso. E tudo foi fluindo muito bem.
Viviam dias ensolarados até que em meados de setembro, um pouco depois da primavera, perto do dia de seus santos devotos, uma tempestade chegou anunciando sua morte. Como pode uma vida que demora anos para ser construída levar semanas para se partir? Pois no dia 27 de setembro de 2021 ele fez sua passagem, foi encantado, abençoado pelos seus santos homônimos. Em sua cerimônia havia doces e oferendas como lembranças. E ele recebeu o presente de uma poesia recitada por seu neto, também gêmeo, que dizia:
Infância
“Quem é que não tem saudade dos tempos que era criança
De vez em quando a lembrança desse tempo ainda me invade
E como dói, meu amigo
Dói que às vezes só consigo dizer que dói
Que dói tanto
Chega a apertar o coração
E por mais que eu tente eu não consigo barrar meu pranto
É que foi lá que fui rei
Que conheci certo dia algo que só hoje eu sei que se chamava alegria
Conheci a liberdade pelas ruas da cidade no meu viver vagabundo
Ao tempo eu fui submisso
Desconheci tudo isso quando eu conheci do mundo
Foi lá que eu corri na rua deixando rastros no chão
Com a minha alma branca e nua
sem mágoas no coração
Foi lá que em cada amizade senti pureza e verdade
mas eu só vi isso então, hoje, depois que cresci
Só depois que conheci falsidade e traição
Foi lá que eu joguei pião
Como ninguém mais jogava
E segurava na mão por enquanto por enquanto ele rodava
Nas voltas que ele fazia eu, inocente, não via que o mundo girava mais
E o tempo igualmente um trem
Além do pião também levou de mim a minha paz
Foi lá que o meu tempo inteiro no meu cavalo de pau
Eu me sentia um vaqueiro correndo no matagal
Galopei pro meu futuro e larguei num canto escuro o meu cavalo
E neste enredo, hoje um potro de verdade não mata mais a saudade do meu potro de brinquedo
Foi lá que eu ia contente para o sítio da minha avó
Hoje vó não tá presente e a saudade aperta em nó
Lá brinquei de boi de osso, peguei piaba no poço
Minha infância foi assim
Tão livre, tão sem maldade, que até mesmo a liberdade sentia inveja de mim
Lá, vó, nos conselhos seus
Dizia que a lavandeira lavava a roupa de Deus poupando a da baleeira
Hoje falam que era mito mas ainda hoje acredito e defendo até meu fim
Que o mundo com sua dança
Não tirou toda a criança que havia dentro de mim”.
A caatinga é viva como os meus pés que se deslocam sempre em busca de novos caminhos com passos que vêm de longe. A filósofa política alemã Hanna Arendt disse: “Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem”. Percebo meus pés mais soltos com as travessias que a vida me permite cruzar. Eles também um pouco inchados, confesso. Depois do semiárido, voltaram para casa com resquícios do barro vermelho da terra entre pequenas fissuras e acidentes de pele. Além de espinhos do coroa-de-frade que transpassaram a barreira do solado dos meus sapatos sem adversidades. Mas meus pés me denunciam onde estive. Eles estão tão vivos quanto eu e as histórias que carrego em mim.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.