É essa a minha espécie, porque às vezes eu só queria ser um animal selvagem e urrar pra alguém, grunhir, pular com as garras na jugular e bater aquela cabeça no chão. Mas não, tenho que ignorar todo o meu DNA e falar “okay, tudo bem”, quando eu só queria latir e morder aquela canela com muita força, igualzinho um cachorro de rua com MUITA fome.
Verdade seja dita que nós argumentamos por que acreditamos no poder da palavra, em sua capacidade densa de alterar formatos rígidos de pensamento. Nós já estivemos lá, eu já estive, já cultivei e verbalizei em alto e bom tom posicionamentos que hoje combato. Mas eu quis passar por isso, escolhi o caminho das pedras, decidi tirar a venda e olhar para além do meu egocentrismo patético. Decidi sair da coadjuvância – da borda, da superfície, da margem – da minha própria vida, decidi enxergar a vida real, sair da bolha, aprender com a história, não esquecer de onde vim, aprofundar minhas questões, ampliar minhas buscas por respostas, por fontes, por inconformismo com o que está posto. Por quem foi posto? Quem disse? Quem sancionou? Quem inventou essa verdade?
Por isso, escrevo isso, cheio de verdade, daquelas que me envergonho de pensar, que na atual polarização política pouco democrática que vivemos, minha vontade era simplesmente dizer “Nu, como você é burro, hein amigo!” Mas não, eu digo “me fale como você se sente representado por alguém que fala isso, isso e isso”.
Isso ainda me choca, olha só. Eu, que pouco me choco, fico boquiaberta com a incapacidade de interpretação de texto dessa galera. Não são capazes de interpretar um tweet, usam ferramentas que os contradizem como se os favorecessem, vociferam suas pequenezas em textos pouco elaborados, repletos de palavras vulgares, ataques desnecessários e sentimentos nocivos.
Isso me lembra da Chimamanda Adichie. Foi ela quem vi pela primeira vez dizer que seu maior erro era achar que tudo que era óbvio para si, era óbvio para o outro. Eu também era assim até ler essa frase. Veja bem, o poder transformador da palavra.
Nós não somos geneticamente preparados para este modelo de vida. É difícil também para quem é fácil, de alguma forma, o sucesso nesta estrutura demanda um ajustamento desconfortável em alguma medida. Um abandono ancestral, uma desconexão com o selvagem. Se adequar e viver bem pedem uma ruptura difícil de aceitar. Acho, inclusive, que estou neste limiar agora, de aceitar que a evolução nos trouxe aqui, que existem coisas maravilhosas criadas também, nem tudo que fizemos foi completamente destruidor da perfeição que nos precede.
Mas odiar, querer agredir e matar o outro que trilha caminhos diferentes do seu, é o próprio antagonismo da nossa sorte evolutiva. Olhem e apreciem tudo que fizemos em alguns milhares de anos, olhem a extensão do nosso império. Como a mesma espécie que faz música e escreve poemas pode violentar e menosprezar seu semelhante por uma escolha que não lhe compete interferir?
Falei tudo isso para dizer que isso me assusta nos dias de hoje. Imaginar que alguém me odeie apenas por que existo. Por isso, meu posicionamento é claro, uma pessoa que fala abertamente sobre odiar alguém que é quem é, que não agride nenhuma outra vida com sua existência, não poderia jamais ser uma escolha inteligente para uma espécie agraciada pela evolução.
Isso também me preocupa. Essa regressão da capacidade de enxergar os palhaços. De observar que o representante do povo quase nunca é do povo, esteve no povo, sentiu as dores do povo.
Além de brega e clichê.
De resto, seguirei sendo educada, mesmo querendo latir.
Seguirei aprendendo a ser gentil – quase sempre – porque o conhecimento nos dá poder.
Seguirei esperançando, como dizia Paulo Freire.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.