“Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que as dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos”.
(Manoel de Barros).
Lendo o livro Tudo é rio, da escritora Carla Madeira, me deparo com a seguinte frase: “Felicidade demasiada é dívida que não se pode pagar. A conta viria”.
Perco por um instante o fio da história e o fôlego ao acessar uma recém-conversa que tive com uma amiga sobre as vertigens do viver. Talvez pela saudade do pai que eu poderia ter tido, ou pelo mar furioso que enfrento diariamente na minha atuação profissional, eu estou sempre atenta ao tropeço que pode desequilibrar o próximo passo. A travessia me fez perder precocemente a ingenuidade. Outro dia, sonhei que estava num tapete mágico sobrevoando bem de longe um lugar cheio de luzes coloridas. Parecia ter uma roda gigante lá embaixo. Tive medo de cair e me agarrei ao tapete. Acho que é um sinal de que não desejo desistir do mundo encantado.
Entendendo o sofrimento como certeza, tenho o hábito de colecionar momentos para aquecer meu peito como um agasalho em dias frios. Os dias leves, que me permitem brotar intensidades, são guardados em um espaço que denomino “canto de memórias”. Quando eu estou com o corpo vazio, acesso esse cantinho. Nesses anos tenho enchido este meu disco rígido com experiências que incluem o nascimento dos meus sobrinhos, escaladas às montanhas, mergulhos em cachoeiras, pedaladas ao ar livre e encontros profundos com os meus afetos. Mas, vivo a dualidade de arquivar instantes prazerosos em plenos períodos de desencanto.
Atendo uma senhora mineira chamada Mariana. Sorriso largo, não deixa de rir apesar das mazelas da vida. Na sua biografia, é filha de pequenos produtores rurais. Deixou a infância na roça após os pais fugirem da seca para a grande São Paulo. Primeira filha de sete irmãos, ajudava nos cuidados com todos e todas. Além das tarefas domésticas, se encarregava da cruel matemática de compartilhar o escasso pão.
Após a morte do pai, assumiu maior responsabilidade para que os menores estudassem. Foi cozinheira em tempo integral, para os patrões e em casa. Adora tutu de feijão, ovo com gema mole e couve com bacon. Um dos seus refúgios foi o cigarro e desenvolveu um câncer de boca que, além de dificultar sua comunicação, lhe tirou o prazer do prato predileto. Me contou toda sua trajetória de forma leve e amorosa, falando de cada um dos personagens familiares e de como mantiveram a união. “Nem sempre é bom, mas também nem sempre é ruim”, disse com um tom suave. Foi uma conversa com cheiro de alegria. Uma doença grave não parecia ser capaz de sufocar sua vitalidade.
Ao final do nosso encontro, perguntei a ela qual era o seu segredo para ver a vida assim. Ela me olhou, sem entender bem, pensou e disse com simpatia: “Talvez sejam meus óculos!”.
Lembro de Miguilim, personagem do escritor João Guimarães Rosa no livro Campo Geral. Um menino de sete anos que aprende de formas dura e lírica a compreender o mundo, em especial com a morte prematura de seu irmão e companheiro, Dito. A vida o adoeceu, mas ele destravou as vistas quando um “dotô” lhe colocou um vidro nos olhos. Percebendo-se míope, os óculos emprestados pelo doutor José Lourenço o convidaram a ver a beleza das formiguinhas e lhe devolveram a luz dos olhos!
“Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo”.
Sinto saudade dessa intensidade emotiva da infância. Da alegria de apenas tomar um sorvete, da surpresa ao ver um cachorro na rua. Ou ainda, de pisar apenas nos ladrilhos brancos ao andar na calçada de casa.
No momento da sua morte, Dito lembra o irmão:
“Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!”.
Penso em mim e em como colocar essa destrava nos meus olhos.
Busco, resgato e abraço a Juju lá do meu arquivo. Ela nunca precisou colocar óculos para perceber os encantos. Têm uns dias em que ela está perdida num labirinto como aquele dos parques de diversão. Em outros, brinca de esconde-esconde com a vida. Penso em quando foi a última vez que saí contemplando o segredo das miudezas. Quando que procurei mais passarinhos do que placas de trânsito? Ou quando olhei mais para os olhos de alguém do que para as telas?
“Mutum é lindo demais”, diria Miguilim sobre sua cidade. E, graças aos conselhos da dotôra Mariana, parafraseio Guimarães Rosa e digo que a nossa terra é bonita demais! Numa improvável sexta-feira à tarde subi o Morro da Asa Delta, na cidade de São Vicente. O programa inicial era andar de teleférico e apreciar a vista privilegiada. Mas, na leveza de um dia abundante, saltei de parapente e mirei tudo com outros olhos!
Será que é o começo do destrave?
Vi as pessoas como formiguinhas! Carros como brinquedos! Prédios como blocos. Pássaros voavam ao meu lado. O vento atravessava meu corpo me arrepiando, muito mais de deslumbre do que de frio. Foi preciso coragem para me desprender e para ver o todo. Saio dessa experiência com mais um arquivo guardado e sentindo o cheirinho da alegria de Mariana.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista