“Ser poeta é ter paixão
E sentir da dor o espinho
Ter tudo no coração
E viver sempre sozinho”.
(Patativa do Assaré).
Aniceto Lourenço é cearense da Chapada do Araripe. Cresceu em terras férteis na surpreendente transição do cerrado com mata atlântica em pleno sertão. Uma terra que recebeu o mar adentro. Um oásis. Talvez por isso ele era leve como uma folha que flutuava em águas refrescantes num dia quente. Mantinha essa suavidade mesmo sendo, desde cedo, um trabalhador rural. Ia para o trabalho na roça com seu pai, Raimundo Lourenço, desde os seis anos. Mas desde os quatro também aprendeu com o pai a arte do sopro.
Em sua família todo mundo deu pra tocador. E assim formaram uma banda que atravessava de geração a geração. A Banda Cabaçal da família surgiu na roça, há quatro décadas, num dia em que o avô de Aniceto, o velho Mateus, capinando o mato se deparou com um marimbondo no pé de bananeira. No final desse dia, contando a todos o acontecimento, ilustrou sonoramente num pífano a sua luta com a perigosa abelha “marimbonde”. Entrando na brincadeira, seus irmãos e primos acompanharam a história improvisando com zabumba, caixa e pratos. A partir deste dia, em todo o crepúsculo, ao redor da fogueira, eles contavam, cantavam e coreografavam os causos do cotidiano.
Aniceto se tornou compositor aos doze anos no dia que ouviu e se misturou com o canto suave e repetitivo, como um metrônomo, da coruja caburé que morava nas árvores atrás de sua casa. Ela cantava voando de galho em galho. A melodia em colcheias tomou sua alma. E ele nunca mais parou de soprar essa linha melódica que virou a sua marca registrada de chegada. Antes de seu corpo adentrar em qualquer recinto as notas assoviadas invadiam os ouvidos de todos o identificando sonoramente. Entre junho e agosto, época da colheita do algodão, junto com a brisa diária, vinham as flores dos pés de algodões da sua região. Isso deu uma ideia ao Aniceto: será que a natureza seria capaz de tocar a sua melodia? Sendo assim, com a ajuda do pai ele construiu uma harpa dos ventos cujos sinos compunham a trilha sonora de sua vida.
A harpa eólica acompanhou Aniceto para sua nova casa quando ele se casou. Ela foi instalada num canto da varanda acima de uma cadeira de balanço de jatobá também herança de família. Todas as noites, após cumprir o roçado, ele ficava criando melodias e canções para os ensaios da banda. Foi lá que ele construiu o pífano de cano de mamona exatamente no dia que soube que sua esposa estava esperando o primeiro filho. Para o segundo filho ele fez uma zabumba com uma grande cabaça serrada e usou o couro de veado. Ao todo teve seis filhos que formavam a quarta geração da Banda Cabaçal. O que as crianças gostavam mais de tocar e dançar era o baião do bode. Gargalhavam enquanto o vô Raimundo gritava:
– Segura o bode!!!!!
Quando a o caçula da banda mirim chegou à maioridade era inverno na Chapada do Araripe. Os ventos mais frescos uivavam nos lajedos. Fazia frio. Seu Raimundo, com a voz invadida por uma tosse mais persistente, pede que Acineto se agasalhe. Eles fariam uma caminhada até um lugar especial, o local para onde o avô Mateus foi quando soube que estava doente. Eles partiram ao final da jornada de trabalho e andaram sobre uma elevação rochosa até seu topo plano onde tinham diversas pedras gigantes, as maiores com até quatro metros de altura. Ao noroeste da chapada chegaram numa rocha que parecia ter sido erodida sob medida e tinha uma forma arredondada. Tinha um grande vão aonde foi a morada do enfermo ermitão. A casa de pedra tinha o que se assemelhava a dois cômodos. Num cômodo ficava uma mesa de granito com quatro bancos de madeira onde o velho Mateus recebia suas visitas. Uma cortina separava um outro espaço mais íntimo. No fundo ainda estavam os ganchos da sua rede de dormir. Mas o que mais chamava a atenção eram as paredes rabiscadas com pensamentos e desenhos. O registro mais evidente dizia:
A morte não me assusta.
Me assusta pensar no que eu não fiz.
E nunca poderei fazer.
No alto do lajedo, olhando para o horizonte, pai e filho se conectam com a natureza e com a ancestralidade. Miram a lua nova no céu com o planeta Vênus posicionado acima quase escorregando. Nessa paisagem Raimundo confidencia ao filho que acha que tem algo de errado com ele. Acreditava que podia estar doente e que gostaria de seguir os passos do seu pai e vir para esta casa de pedra.
Aniceto vinha sentindo que seu pai estava mais magro. Na outra semana percebeu que o cinto dele estava com um furo a mais feito por um prego. Percebia também seu chapéu mais frouxo e que com frequência vinha para a frente tapando seus negros olhos. O corpo de Raimundo parecia opaco. E não tinha erva-de-santa-maria capaz de amenizar a gripe que tinha se instalado. Já tinha enjoado do cheiro do chá de mastruz com leite que bebia todas as manhãs.
O filho incentivou o pai a ir para cidade grande para se tratar. Eles poderiam tentar ver algum conhecido em Juazeiro do Norte. Aniceto lembrava que seu vizinho tinha um filho que morava perto do mercado central no bairro Pirajá e podiam se instalar lá durante o tratamento. Mas Raimundo não queria. Para ele, seu processo de morte já tinha começado no dia em que ele começou a viver sessenta e cinco anos atrás. Preferia ficar no lajedo na companhia de familiares do que num hospital sob recomendações de médico “enjalecado”. Ele sentia que não havia o que a medicina fazer para reverter sua saúde. A medicina ainda não é milagrosa. Ele tinha embarcado no reino da doença. Por isso, tinha que se separar dos sadios.
Raimundo Lourenço partiu para a chapada das pedras assim que acabou o verão. Partiu sem dar tchau. Colocou o pífano fechando os panos que embalavam suas roupas. Na cintura uma garrafada de mastruz. Se alojou na mesma rocha de seu pai. E passou os últimos tempos de sua vida debruçado num projeto que entendia como um legado. A construção, para Aniceto, de um realejo que reproduzisse o que eles denominaram de melodia caburé.
No dia do velório o filho, diante da ideia de que nunca mais voltaria a ouvir os cantos do pai, tocou na manivela da caixa musical sua elegia. E provocou um afluxo de lembranças na reprodução da suave canção que falaria com seu coração e reanimaria sua sensibilidade. Aniceto, desde cedo, soube que tinha nascido mais um tocador. E a partir daquele momento se tornou Aniceto Realejo, o músico. Ser compositor era tão comum como respirar. E ele nada mais fazia do que deixar fluir o sentimento e as emoções que já existiam nele. Escrevia canções e descobria palavras que brotavam espontaneamente ficando de um jeito harmonioso.
Perguntavam a ele na roça:
– Aniceto, por que escrever? Para que ou pra quem cantar?
Esses questionamentos da criação se integravam à própria poesia que era espontânea. E ele respondia:
Para fluir os sentimentos. Somos seres sentimentais. O coração é a terra. A poesia é a semente. O que estiver nascendo florescerá nos nossos corações. E, assim, seguiu tocando seu realejo pelas ruas, colocando seu corpo e sua música na potência por toda a parte.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.