Foto: Newton Rodrigues

Há citações sobre a existência de feiras na Antiguidade. Porém, o melhor registro sobre a sua origem, evolução e funcionamento é o livro “100 Anos de Feiras Livres na Cidade de São Paulo”, de Antonio Hélio Junqueira e Marcia da Silva Peetz, publicado em 2015.

Os autores afirmam que é no “seio da sociedade feudal europeia, na passagem do século X para o XI, que poderão ser encontradas as raízes das feiras que, atravessando séculos e continentes, chegaram à contemporaneidade na forma como são hoje conhecidas”.

Ressaltam que, na cidade de São Paulo, no século XVII já havia pequenas feiras, rudimentares, mas a regularização, realizada em 1914, está relacionada com a conjuntura socioeconômica e política. No ano anterior, trabalhadores organizados com a participação de sindicalistas e lideranças anarquistas reivindicavam o barateamento dos alimentos e aluguéis, jornada de trabalho de oito horas, abolição do trabalho infantil e proteção ao trabalho feminino. No entanto, a luta principal era a redução dos preços dos alimentos.

Havia falta de gêneros alimentícios que, quando ofertados, o custo era muito elevado. As feiras surgem como uma possibilidade de redução de preços, pois havia a proposta de produtores comercializarem diretamente para consumidores. Os autores do referido livro citam que comerciantes de gêneros alimentícios estabelecidos à época tacharam a feira livre de subversiva, anarquista, socialista e prejudicial ao comércio. Esse comportamento revela o caráter popular das feiras.

Na década de 80, no início do processo de redemocratização do Brasil, como herança da ditadura militar, havia expressiva perda do poder de compra dos salários e desemprego acentuado. O governo do estado de São Paulo interveio no comércio varejista com a implementação de projetos com o objetivo de diminuir a distância entre preços dos alimentos e renda.

Em relação aos hortifrútis houve dois tipos de equipamentos que operavam com preços controlados: o varejão e o sacolão. No primeiro, estabelecia-se uma margem bruta de comercialização, comumente 20%, considerando os preços do comércio atacadista por tipo de produto e definiam-se os preços máximos permitidos que poderiam ser praticados pelos varejistas. Varejão era uma feira com preços controlados com intervenção somente sobre os preços praticados no varejo.

No caso do sacolão, definia-se um preço único por quilograma para todos os produtos e havia apenas um comerciante que o operava. Posteriormente, proliferaram os sacolões operacionalizados por agentes privados sem a participação do poder público na organização. Neste tipo de equipamento havia uma tendência de comercialização de produtos de qualidade inferior.

Em Santos, durante os governos do Partido dos Trabalhadores, entre 1989 e 1996, os equipamentos de comercialização denominados Feiras Modelo e Central Varejista Popular, também eram feiras com preços controlados e funcionavam de acordo com as regras similares a dos varejões.

Com o objetivo de proporcionar preços mais reduzidos aos consumidores, técnicos da então Secretaria Municipal de Abastecimento reuniam atacadistas e varejistas para negociar preços. Para os feirantes que trabalhavam nos equipamentos de preços controlados, havia um desconto de 10% por parte dos atacadistas. Sobre estes preços estabelecia-se uma margem bruta de comercialização de 20%.

Assim, o segmento do atacado também participava do projeto, o que permitia a prática de preços mais reduzidos por haver o envolvimento desse setor. Outros projetos com o objetivo de reduzir preços foram desenvolvidos pela prefeitura naquele período. Para conhecer, segue link.

As feiras não se limitaram a um espaço de trocas com base na lógica mercantil. Observa-se que também são espaços de criação de relações de proximidade entre comerciantes e consumidores que negociam diretamente preços, qualidade de produtos e a entrega das compras. Há muitos casos em que a escolha de frutas, legumes e verduras cabe ao feirante de acordo com o desejo já conhecido dos clientes. Nas feiras, os vizinhos se encontram, cumprem a tradição do consumo de pastel. Enfim, aspectos da cidadania são experienciados nesses espaços, que apresentam uma diversidade considerável de produtos.

Há duas frases com sentidos antagônicos que são repetidas há muitos anos: “as feiras livres vão acabar” e “adoro ir à feira”. Mesmo com a emergência dos supermercados e a intensa urbanização as feiras não acabaram, mas reduziram a participação no comércio varejista de hortifrútis.

As feiras de produtores rurais também emergiram na década de 1980. Em Registro/SP, por exemplo, as regras definidas pelos expositores e gestores não permitiam a revenda de produtos. A comercialização de bolos, doces e pães era permitida somente se fossem produzidos pela família rural. Já os refrigerantes eram proibidos. Valorizava-se os sucos elaborados com frutas do local e o caldo de cana. Atualmente há três feiras desse tipo na cidade que constituem uma tradição.

No final da década de 1980 e início da década de 1990 emergiram as feiras de produtos orgânicos também com comercialização direta, com apoio da Associação de Agricultura Orgânica (AAO) e Associação de Agricultura Natural de Campinas e Região, e participação do poder público na sessão de espaços. Esses equipamentos tinham o objetivo de atender a demanda de consumidores, divulgar os orgânicos e, obviamente, gerar renda para os produtores. Atualmente há feiras de produtos orgânicos em diversos municípios. No entanto, empresas agrícolas passaram a adotar tecnologia de produção de orgânicos e os supermercados também comercializam esses produtos.

A instituição pelo governo federal da legislação que rege a produção e comercialização de orgânicos no Brasil foi resultado da luta dos movimentos sociais. Dessa forma, para que um produto seja classificado como orgânico deve contemplar um conjunto de aspectos relacionados às operações técnicas de produção e de caráter sanitário.

Há três modalidades que possibilitam a garantia de que o produto é orgânico. A mais adequada para os agricultores familiares que comercializam nas feiras e que fortalece as relações de confiança e cooperação entre eles e consumidores é a Organização de Controle Social (OCS). Esse tipo de organização deve seguir as normas estabelecidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e permite a comercialização direta nos seguintes casos: feiras, atendimento a grupos de consumidores e vendas na propriedade, mercados institucionais públicos como o Programa de Aquisição de Alimentos e Programa Nacional de Alimentação Escolar.

Nas OCS a confiança é construída entre famílias agricultoras e o público consumidor gerada no processo de comercialização e pelas visitas dos consumidores aos locais de produção e das próprias famílias agricultoras entre si. Não se trata de um agricultor fiscalizar outro, mas cooperar para aperfeiçoar as técnicas utilizadas. Para conhecimento das regras de constituição de OCS acessar aqui.

Na Baixada Santista, existe a OCS Eng. Agron. Kanai Fujihira, constituída por agricultores familiares de Itanhaém, que comercializam os seus produtos diretamente na feira do produtor do município. Essa experiência pode ser uma referência para outros municípios da região.

A partir de 1994, iniciaram no Brasil a realização das feiras de economia solidária, com destaque para a Feira do Cooperativismo do município de Santa Maria/RS, que contou com a liderança da Irmã Lourdes Dill para se concretizar.

No início dos anos 2000, em São Paulo, capital, também foram implantadas feiras de economia solidária com apoio do Fórum Municipal em parceria com a prefeitura. Posteriormente, houve apoio do governo federal por meio do Programa Nacional de Apoio às Feiras de Economia Solidária, implementado entre 2005 e 2008, pela Secretaria Nacional de Economia Solidária.

Objetivava-se dar visibilidade e promover a comercialização de produtos dos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES), estimular o consumo consciente e construir redes de EES. Essas feiras aumentaram em número mesmo após o fim do programa e são realizadas principalmente onde o movimento de economia solidária está organizado e/ou há governos municipais ou estaduais que apoiam o fortalecimento da economia solidária.

Recentemente, passou-se a divulgar a realização de feiras de economia solidária e agroecologia, ou seja, um outro termo foi incorporado e que poucos conhecem o sentido, apesar de muitos já terem ouvido. Importante ressaltar que a agroecologia não se refere somente à produção de orgânicos, pois se coloca como uma forma de desenvolvimento rural sustentável, que é a antítese do que provoca o agronegócio, com a concentração dos recursos e contaminação dos alimentos, da água e do solo.

Stephen Gliessman, autor do livro “Agroecologia. Processos Ecológicos em Agricultura Sustentável”, afirma que se trata da “aplicação dos conceitos e princípios ecológicos no desenho e manejo de agroecossistemas sustentáveis, pois é uma agricultura que protege a base de recursos naturais e permite uma economia viável que também propõe um aspecto social justo e aberto a todos que fazem parte da sociedade”.

A Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI), órgão da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, apresenta a agroecologia como “uma ciência que fornece os princípios ecológicos básicos para o estudo e tratamento de ecossistemas tanto produtivos quanto preservadores dos recursos naturais, e que sejam culturalmente sensíveis, socialmente justos e economicamente viáveis, proporcionando assim, um agroecossistema sustentável. A abordagem agroecológica da produção busca desenvolver agroecossistemas com uma dependência mínima de insumos agroquímicos e energéticos externos”.

A Sempre Viva Organização Feminista (SOF), na publicação intitulada “Autonomia das Mulheres e Agroecologia no Vale do Ribeira”, aponta que “o problema que se coloca então é como fazer uma agricultura que se integre aos ciclos da natureza, que respeite seu ritmo e que, ao mesmo tempo, permita que as pessoas tenham acesso a alimentos nutritivos, saudáveis e de acordo com a cultura. A agroecologia reúne alguns aprendizados para responder a esta questão…oferece boas bases para construir a igualdade de gênero pois permite diferentes usos do espaço e do tempo para realizar de forma combinada atividades produtivas e reprodutivas”.

Dessa forma, a agroecologia incorpora princípios da economia solidária, como autogestão, cooperação e respeito ao meio ambiente, por exemplo, assim como contribui para o fortalecimento da economia feminista e, consequentemente, com a emancipação das mulheres.

A confiança e a transparência também são aspectos determinantes que unem economia solidária e agroecologia nos processos de suas construções. Por isso, ao se afirmar que uma feira é de economia solidária e oferta produtos agroecológicos, deve-se garantir que de fato seja, ou pelo menos tenha expositores em processo de transição. Caso contrário, perde-se credibilidade por ofertar um engodo às pessoas que querem contribuir com a construção de uma outra economia, como consumidores conscientes e, assim, nada se transforma.

As feiras de economia solidária dão oportunidade para os empreendimentos coletivos e familiares comercializarem a sua produção. Mais que isso, os coloca em um processo de transição solidária, que pode ser compreendida como uma forma de praticar a economia solidária de forma paulatina, adquirindo conhecimento sobre o tema e, principalmente, envolvendo-se na construção de empreendimentos econômicos solidários.

Neste caso, há uma migração da lógica de produção individual para atuarem de forma coletiva, em reciprocidade, na gestão das próprias feiras, que comumente é compartilhada com gestores públicos por utilizarem espaços de uso comum. Nesses equipamentos estabelece-se proximidades entre os expositores e destes com os consumidores, com a construção de relações de confiança e fidelidade. Há trocas de saberes, aprendizagem e enriquecimento cultural.

Para que uma feira seja de economia solidária, recomenda-se algumas práticas coletivas que já são adotadas por alguns grupos, como: criação de um regimento interno de forma democrática, definição dos ramos de atividades que integrarão o equipamento, estabelecimento de uma reserva de recursos para uso do grupo, fundo rotativo solidário com o objetivo de compra de barracas e outros equipamentos, entrega em domicílio de forma conjunta e rodas de conversa de avaliação da feira para correção de rumos e debate sobre economia solidária.

Há um fator limitante para a consolidação das feiras de economia solidária: muitas são montadas eventualmente, em datas comemorativas ou quando os seus integrantes têm produtos. Não há um dia e horário fixos da semana. Esse fato não possibilita que se estabeleça relações de proximidade, confiança e fidelidade com os consumidores.

A diversidade de produtos ofertados em uma feira também é um fator importante e não sendo boa, também pode limitar a frequência. Além disso, as atividades culturais devem sempre ser organizadas, com a apresentação de artistas locais. Aliar valorização e fortalecimento cultural com entretenimento no espaço público, é de grande importância para a constituição da feira como um espaço plural, de encontros e aprendizagem.

Quando nada disso ocorre, o que se chama de feira de economia solidária, na verdade, é uma feira sem diferenciação em condições menos favoráveis que uma feira livre, que comumente oferece maior diversidade de produtos e realização semanal, o que possibilita que os consumidores se programem para as compras.

Não se pode ter a ilusão de que as feiras de economia solidária e agroecologia serão o fator determinante que superará o agronegócio. Por outro lado, são equipamentos importantes que geram trabalho e renda, proporcionam visibilidade para os produtos e serviços da economia solidária, que são resultado de relações horizontais e sem agrotóxicos, assim como artesanatos de artistas locais. Essas feiras são uma contribuição ao processo de democratização da economia. No entanto, deve-se aumentar a diversidade de produtos a partir da ampliação da área cultivada com base na agroecologia para que se consolide e contribua efetivamente para a segurança e soberania alimentar.

É importante ressaltar que as características das feiras, desde a criação das feiras-livres, dependendo do momento histórico, são resultado das aspirações de uma parte da sociedade que luta contra a carestia, pela geração de trabalho e renda, por desejar adquirir produtos que sejam resultado de relações democráticas e não da exploração de mão de obra, que valorize a agricultura familiar e os artesãos, não tenha agrotóxicos e fortaleça a economia local.

Na Baixada Santista há as seguintes feiras que têm características da economia solidária, comercializam produtos orgânicos e/ou agroecológicos e artesanato, organizam atividades culturais e são montadas de forma permanente:

Bertioga

Feira Artes e Aromas da Mata Atlântica. Sabores Caiçaras – Rua Manoel Gajo, 1080 – Sábados das 15h às 19h.

Santos

Feiras de Produtos Orgânicos – Sábados: Praça da Cidadania – Avenida Ana Costa, 340. Domingos: Praça Washington s/n – Orquidário. Ambas das 9h às 13h.

– Itanhaém

Feira do produtor – Sábados – Estacionamento do paço municipal. Avenida Washington Luiz, 75 – Centro. Das 8h às 14h.

– Peruíbe  

Feira do Produtor Rural de Peruíbe – Terças-feiras – Estação em frente à rodoviária. Quartas-feiras – Avenida São João –  Esquina com Avenida Padre Anchieta. Ambas das 8h às 13h

Feira de Economia Solidária do Mercado de Peixes – Sábados, domingos e feriados –  Avenida Padre Anchieta, S/N – Centro das 10h às 16h.

Mostra de Economia Solidária de Peruíbe – Terceiro sábado de cada mês. Avenida Padre Anchieta, esquina com Avenida São João. Das 17h às 22h.

Com o objetivo de ofertar produtos locais para os turistas, neste município são organizadas feiras de economia solidária nos meios de hospedagem, como as colônias de férias, por exemplo, o que se constitui uma inovação que pode ser reproduzida em outros lugares.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.