“Tempo é a vida da morte, imperfeição”
(João Guimarães Rosa).
Sou matéria a ser esculpida pelos ventos de Iansã. Inicialmente, como uma pedra bruta, me vi com riscos de rachaduras nas primeiras vezes em que tive de ser flexível. Mas, de grão em grão venho me lapidando, meu corpo tomando forma e novos contornos, delimitado pelas bordas do viver. Ser é se reconstruir a cada adversidade, é deixar de lado o que achamos ter sob controle. Podemos fazer a gestão da música que queremos ouvir ou do que vamos jantar. Não domesticamos a vida, a reinventamos e a transformamos.
Acompanho Janine por um câncer de mama há dois anos. Desde o diagnóstico, tanto eu quanto ela tivemos que nos acostumar com as notícias difíceis. Não passamos muitos meses sem que uma dessas visitas indesejadas ocorressem.
Para começar, teve um raro tumor de mama que, apesar da quimioterapia, não teve uma boa resposta. Fez outras modalidades de tratamentos, incluindo uma cirurgia radical com a perda total da mama. Nesse ínterim, teve também um câncer de rim e agora está com a doença sem controle. Irrefreável, ela acomete pulmões, fígado e ossos. Nas consultas em que ela me traz resultados de exames costuma me dizer:
– E agora, Juliana, qual é o novo problema que eu terei que enfrentar?
Da última vez que isso ocorreu, apesar da tristeza, já esboçamos um olhar de cumplicidade por entendermos a dinâmica da história natural de sua doença. E, como ela mesma me disse, não tem como ir contra. Ela aceita e se molda na travessia que se apresenta. Foge da postura de combate tantas vezes incentivada pela metáfora enraizada da “luta contra o câncer”. E ela sabe que estaremos juntas e que não perderá nenhuma batalha. A cada encontro com ela aprendo que a maleabilidade permite a alegria. Encarar o fato da possível morte próxima a desperta um entusiasmo por uma vida ainda mais viva.
Ser saudável é a única fórmula para felicidade? O que é felicidade? O que é estar doente? Ter uma doença crônica incurável é mais ou menos grave do que se moldar a uma sociedade do desempenho? Me questiono sobre quem está mais doente. Se é quem tem um corpo que não produz o esperado ou quem está, como diz a jornalista Eliane Brum, “exausto-e-correndo-e-dopado” para cumprir tarefas atuais.
Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta sul-coreano, abre a sua obra “Sociedade do Cansaço” assim: “Cada época possui suas enfermidades fundamentais. Desse modo, temos uma época bacteriológica que chegou ao final com a descoberta dos antibióticos. (…) A perspectiva patológica do começo do século XXI é neuronal. Doenças neuronais como depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológica”.
Antonieta, 39 anos, se vê desencantada. Após oito anos do término do tratamento de um câncer, ela ainda sente dores na alma e não se vê com novas possibilidades. Está curada, mas se sente sem vida. Chegou a passar em psiquiatras que medicalizaram as suas dores do existir sem sucesso, porque essas são concretas e de causas complexas. Não conseguiu retornar ao mercado de trabalho, não pôde engravidar, vive um relacionamento abusivo e sustenta o matrimônio por uma dependência especialmente econômica. As brigas têm se tornado constantes e cada vez mais violentas. Em sua última consulta, acompanhada de uma amiga, traçamos estratégias não medicamentosas para mudanças. Nossas consultas também são permeadas por momentos difíceis devido à escuta para uma dor diferente, uma dor da falta de perspectiva de uma existência plena. Uma vez, perguntei o que mais a entusiasmava e ela me disse que nada, que atualmente sua rotina era dormir, comer, ver televisão e brigar com o esposo.
Saí dessa consulta refletindo que o brilho dos olhos pode partir mesmo em vida e que a tristeza pode ser contagiosa. Sentia um peso dentro de mim e tracei paralelos com as minhas adversidades. Não haveria medicação que resolvesse esse meu vazio. Fui tomada por uma sensação de desamor. Toda vida não deixa de ser uma invenção própria e podemos escolher quem queremos ser. É um enredo plural com várias possibilidades de desfecho, tudo depende de como eu quero olhar para ela.
Voltando para casa, no final de tarde, vejo Janine em um quiosque da praia tomando uma água de coco e mirando o mar. Paro minha bicicleta, pergunto o que ela está fazendo, e ela me diz que está esperando o nascimento da lua. Também compro um coco pra mim e ficamos quietas uma do lado da outra olhando com a mesma cumplicidade das consultas para o entardecer.
Como uma brisa que leva embora o calor de um dia de verão, relembro o psicanalista Roberto Freire dizendo com sua voz rouca e grave que “o oposto da morte não é a vida, é o amor”. Talvez trôpego e cambaleante, com sua exuberante barba, ainda me lembre que amar não deixa de ser um ato revolucionário. E assim, desperta em mim o anseio de uma nova rajada de vento que me esculpa. Que tire de mim novas lascas e, porque não, evidencie imperfeições, sinal de que a vida passou por aqui.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista