“Minha vida está nos meus poemas,
meus poemas são eu mesmo,
Nunca escrevi uma vírgula
que não fosse uma confissão”
(Mario Quintana).
Em fevereiro de 2021 tive uma grande estreia na minha vida. Após dois anos de deslocamentos exclusivamente rotineiros de bicicleta, fiz minha primeira cicloviagem. O destino foi o deserto do Jalapão, no cerrado tocantinense. Foi uma experiência de grandes aprendizados em diversas questões.
O primeiro desafio foi o de pedalar muitos quilômetros por dia em uma mountain bike. Meu transporte cotidiano é quase que somente em ciclovias e é feito numa bicicleta urbana, que aprendi chamar-se híbrida, sem marchas. Quanto a isso, percebi que meu corpo se adaptou rapidamente ao meu novo veículo após poucas horas do primeiro dia. Depois de alguns estranhamentos, eu e minha nova companheira estávamos nos dando bem. Já sabia como pegar no guidão, como me posicionar no selim, como trocar as marchas.
Mas os aprendizados foram muito além de um corpo em cima de duas rodas. Pedalar no areião do deserto brasileiro foi algo que me tocou profundamente em pontos existenciais. A areia, sendo fofa, controla totalmente a situação e não adianta lutar contra. Aliás, se resistir à falta do controle, você cai. Demorei algumas horas, e muitos tombos, para entender isso. Precisava deixar meus braços soltos, apesar de manter as mãos firmes no guidão. Precisava dançar no assento, acompanhando um ritmo que não era ditado por mim, e sim pelos obstáculos que enfrentava externamente. Isso tudo sem parar de girar, sempre pedalando. Quanto mais livre eu permanecia, quanto mais eu soltava meus braços, pescoço e pensamento, menos eu ia ao chão.
No segundo dia, o maior desafio foram os caminhos em terrenos acidentados, com descidas mais estreitas em estrada de terra batida com caminhos moldados pelas águas ao redor. As trilhas eram mais restritas, quase que só podíamos passar por um local. Nesse momento um companheiro de viagem me disse: “Juliana, somente olhe para onde você precisa ir”. Quanto mais eu olhava para onde tinha que ir, menos me assustava com enormes buracos, com alguns barrancos e com as pontes adiante.
Após mais de 25km por dia em que pedalávamos no calor do norte brasileiro, minha respiração ofegava cada vez mais. Inspirava pelo nariz, expirava pela boca, num movimento quase que natural desde o meu nascimento. Mas, sendo a atividade física mais desafiadora do que meu habitual, me peguei valorizando minhas incursões respiratórias, ainda mais num momento em que estamos todos mascarados e em que pessoas morrem de angústia respiratória pela infecção do coronavírus.
Relendo um artigo sobre dispneia, termo técnico usado para denominar falta de ar, relembro que é uma sensação de dificuldade ou desconforto para respirar, mas também é um medo de ser incapaz de respirar. Há frases de pessoas que passaram por essa experiência sendo assim descritas:
“Sinto que minha respiração para”.
“Sinto que estou sufocando”.
“Minha respiração requer esforço”
Respirar… Algo tão valioso e que não percebemos no nosso cotidiano, mas agora está evidente a cada dia na catástrofe histórica que presenciamos. O sofrimento do outro não está nas telas de uma televisão, ele também é meu, é de todos nós.
O cuidado paliativo é uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida de pacientes e familiares que estejam diante de uma doença grave e que pode limitar tempo de vida, seja esta doença aguda ou crônica. De uma forma simplificada, o propósito é aliviar o sofrimento em qualquer fase de uma enfermidade que ameace a vida. Quando houver doença grave e sofrimento, existe a sua necessidade. Por isso, em situações de crise humanitária a abordagem se mostra essencial. Numa tragédia, salvar vidas é um objetivo crucial, mas não é o único.
Como acalmar a dor do outro em meio a uma pandemia que já matou mais de 300 mil brasileiros? Diariamente, em minha atuação, sento junto da angústia das pessoas, acaricio suas cicatrizes e nunca volto para casa sozinha. Se alguém compartilha algo comigo isso também me pertence, a agonia do outro não deixa de ser minha também. Fazer parte da história dos demais é minha militância, minha forma de andar por aí ressignificando o sentido da vida. Já que morremos no final, por que viver? Me pego muitas vezes pensando…
Em setembro de 2019 fui à exposição fotográfica do Sebastião Salgado sobre a Serra Pelada. Em 1979 houve a acidental descoberta de ouro em uma remota área do Pará que atraiu garimpeiros de todo o país. Gente que adentrou terras a qualquer custo buscando pedras preciosas e que cavou um buraco de 200m de profundidade, em um lugar que antes era colina, apostando na chance de ficar rico. Terra com traços de sangue, com o feitiço do ouro enlouquecendo homens que varavam dias e noites esperando serem “abençoados” pela descoberta. O ouro, dentre outras coisas, é considerado uma grande riqueza, mas hoje abro o jornal que clama pelas 20 mil pessoas esperando uma vaga de UTI e não paro de imaginar que os anéis dessas pessoas estão guardados em caixas, enquanto que o que elas precisam mesmo é de oxigênio.
Do que me valem meus bens de consumo? Será que, de fato, são tão valiosos quanto as relações humanas?
Outra grande constatação da minha viagem foi a solidariedade que recebi de todos meus colegas de pedal. Sendo eu a única estreante de cerca de quarenta pessoas, o que não sobrou foi empatia ao me orientar sobre as adversidades e desafios do caminho. Foi uma linda travessia, que começou fora de mim e modificou o que há de mais humano dentro de mim.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista