“Meu Limão, Meu Limoeiro
Meu pé de jacarandá
Uma vez tindolelê
Outra vez tindolalá”.
A vida é caracterizada pelo presente. Vivemos eterna e infinitamente o dia de hoje. O passado é a vida que ficou para trás e nos damos conta dele quando transcorrido um certo tempo. Passado é um espaço de acesso a pessoas e acontecimentos pregressos que são parte da nossa individualidade. A versão do que passou é exclusivamente nossa e é matéria intransferível.
Acessamos o passado de alguém caso as experiências tenham se cruzado. Ou, ainda, se as partes estão dispostas a abrir as lembranças e compartilhar escutas e sentimentos. João Guimarães Rosa disse “como vivi e mudei o passado mudou também. O fato se dissolve”. Somos impermanência. Para não desaparecer só nos resta cultivarmos as memórias. O material básico é a transmissão das histórias.
Por isso, entendi a Marinete que disse que quando sua irmã, Ana, morresse, parte dela também morreria. A vida de uma se entremeava com a da outra. E a história de seus antepassados, contada oralmente de geração para geração, se transformava em um embate de narrativas.
A história parece roteiro de filme. É algo assim:
Estevão foi o nome de batismo dado a um indígena maranhense que foi escravizado em um engenho de açúcar no Nordeste brasileiro, mais especificamente no Ceará. Amália era a filha do dono de engenho. Amália e Estevão viveram um romance proibido, nascendo Maria da Lua numa noite clara em que as estrelas eram ofuscadas pela cheia do luar.
Esta bebê teve que ser entregue a uma prima solteira chamada Orvalina para que fosse criada longe dos olhos julgadores da comunidade. O romance segue a despeito da insatisfação da família e pouco tempo depois nasce Zeca Bezerra que, por ser homem, foi criado pela mãe.
Mas Amália nunca superou o abandono à Maria da Lua e, por um sentimento de culpa reprimido, desencadeia um quadro de loucura. Talvez um feitiço da lua, diziam os supersticiosos. Zeca Bezerra cresceu ouvindo a mãe chorar e lamentar a perda da filha e se sentiu abandonado. Virou um homem rico, poderoso e vingativo. Tentou se reconciliar com sua irmã, mas ela nunca perdoou a rejeição familiar. Maria da Lua teve sete filhas. A segunda era a Marinete e a terceira a Ana.
Elas contavam, frequentemente, cada uma a sua versão da história. Ana, que nasceu como a mãe numa noite de lua cheia, era considerada aluada. Ainda mais quando seu câncer cerebral começou a afetar a sua percepção da realidade e a sua memória. Com o avanço da doença, ela se perdia num espaço vazio do passado e falava mais sobre sua infância no sertão e sobre sua avó delirante e abastada financeiramente. Dizia que sentia o cheiro do céu quando as escassas chuvas caíam e que sabia pela quentura do sol o aviso sobre a chuva por vir. Antes mesmo do céu cinzento, ela prenunciava as águas e orientava o momento e do cultivo do feijão nas beiras de veredas.
Quem tem contato com o campo vê as coisas diferentes, me dizia.
No nosso primeiro contato a maior discussão não foi sobre os tratamentos para o câncer do cérebro recém-diagnosticado e, sim, sobre limões. Ana sentia uma dor de cabeça recente e inédita o que a levou a fazer um exame de tomografia computadorizada do crânio. Ao receber o resultado, o primeiro profissional que a atendeu explicou que ela tinha um tumor do tamanho de um limão na cabeça. Isso, ao invés de elucidar as dúvidas, despertou maiores questões.
De qual limão estamos falando que tem na minha cabeça? E quando vi estávamos debatendo sobre os tipos de limões. E ela ficou mais tranquila ao saber que seu tumor se assemelhava mais a um suculento limão taiti do que a um limão siciliano e sua casca grossa. Ela estava sozinha nesta consulta e queria entender bem o que lhe acometia para explicar para suas sete irmãs.
Ana fez uma cirurgia de tentativa de ressecção do tumor e se recuperou razoavelmente bem, fugindo às estatísticas. Fez radioterapia que, além dos cabelos, levou mais de suas memórias. Isso tudo bem timidamente. Foi obscurecendo por dentro. Construindo enredos que só ela bem entendia. A cada dia eram menores as comunicações com a realidade. Poucas coisas a traziam para o momento presente.
Na sua última semana de vida, sua irmã Marinete trazia em um vaso uma muda do pé de limão cravo do seu quintal e algumas frutas para fazer uma limonada. Me perguntou se poderia oferecer o suco à irmã na tentativa de trazer à tona algum grau de conexão. Tinha certeza de que o perfume do fruto a despertaria do mundo da fantasia. E foi aí que eu entendi a nossa primeira conversa.
Quando a família saiu do sertão cearense para vir para o estado de São Paulo vieram para a região do litoral sul em um sítio nas proximidades de Peruíbe. Moravam em uma área rural e tinham algumas árvores em seu quintal, sendo a sua predileta, o limoeiro. Foi nele que quebrou seu braço quando subiu ainda adolescente num galho buscando o cheiro da chuva. Foi nas suas sombras que deu seu primeiro beijo e registrou “A&S” no tronco quando ainda acreditava no primeiro amor eterno. Foi lá que fez o balanço de sua filha quando ela queria ir ao parque. E era lá que gostaria de ter enterrado sua mãe, Maria da Lua, numa noite quente sem sinal de chuva.
No dia de sua partida ela teve um momento de lucidez. As irmãs diziam que era a melhora da morte. Num rompante de clareza pediu aos familiares que não chorassem pela partida de seu corpo físico, porque ela já tinha partido quando suas histórias escaparam de dentro dela. Não esqueceu dos pés de limão, não esqueceu da vó Amália. Deu a muda do limão cravo para Marinete e pediu que cultivassem ela como ela fazia com as suas memórias, que cultivassem e germinassem a história de seus antepassados. E assim, depois da despedida, a lua se ergueu e Ana parte junto com o dia morrendo em um pôr do sol esplendoroso.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista.