Ela tinha 70 anos quando foi ao cartório registrar o desejo de doar o próprio corpo para a faculdade de medicina, após a sua morte. Chegou em casa e anunciou aos familiares a decisão. Eles receberam a notícia e ficaram impactados, sem entender bem, estaria ela doente? Não, estava apenas refletindo sobre a finitude e sobre seus desejos de como ser tratada quando não pudesse mais se expressar.
Nessa ocasião, eu tinha 18 anos e estava prestando vestibular. Lembro da preocupação dela, caso falecesse antes do meu ingresso na faculdade. Não tinha como uma neta estudar anatomia no corpo de sua avó.
Passaram-se 18 anos até que a sua morte chegasse. No rápido processo de adoecimento por um câncer de pâncreas, ela compartilhou as decisões sobre o próprio plano de cuidados, limitou medidas invasivas e cobrou a garantia de que o desejo de doação fosse acatado após sua partida. E, de fato, tudo foi do jeito planejado por ela.
Você já pensou alguma vez como quer ser cuidado caso perca a capacidade de se expressar? Está pronto para fazer escolhas por si mesmo? Está disposto a ser adequadamente informado sobre possibilidades de saúde e doença, ajudando a traçar opções de tratamento livre de pressões indevidas?
Responder sim a essas perguntas é um ato de coragem! Coragem de pensar sobre a impermanência da vida, sobre o não controle dos fatos e sobre os contratempos possíveis. Guimarães Rosa nos disse que viver é perigoso, mas o prazer da autonomia pode ser recompensador.
Autonomia é uma palavra nova na área da saúde, que não existia na época de Hipócrates. Ela vem ganhando força graças ao novo modelo de relações interpessoais e à prática moderna da medicina com o modelo deliberativo de tomada de decisão. Ainda temos a cultura patriarcal de delegar decisões importantes das nossas vidas nas mãos de profissionais de saúde que, muitas vezes, são ótimos tecnicamente, mas não nos conhecem nas nossas profundezas.
É preciso dizer que vivemos em um país cuja legislação assegura nossa coparticipação nas determinações terapêuticas.
A resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina dispõe sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV). Estas são um conjunto de decisões a serem tomadas em compartilhamento com o médico. A partir de então, delibera-se com este sobre as opções de tratamento e até onde ir mediante um quadro de adoecimento, para elas serem respeitadas mesmo em situações de discordância por parte de familiares e/ou conhecidos.
Somos humanos à medida que brilha em nós a diversidade. Pontos de vista diferem, de acordo com os valores individuais. A vida de cada pessoa é única e sua história deve ser levada em consideração até o último minuto. Se muitas vezes não concordamos com o destino de uma viagem de férias, com o prato do dia ou até com um presidente da República, por que temos todos que seguir o mesmo “protocolo” de tratamento médico? Haverá os que estão dispostos a tudo para sobreviver alguns minutos a mais e haverá os que entendem que viver é diferente de sobreviver. Quem está certo? Há um juiz que possa definir o correto? Ou o que temos é que personalizar o cuidado?
Por isso, é importante refletir sobre autoconhecimento, sobre autocuidado e sobre valores próprios enquanto ainda se tem saúde. E, no processo de qualquer adoecimento, apesar de o médico ser o “cérebro” na tomada de decisões, você pode ser o “pescoço” que norteia a visão de qual horizonte você quer ver. Prefere olhar para a direção de suportes invasivos, dispositivos, cirurgias, se tiver indicação? Ou prefere olhar para a direção de um cuidado menos invasivo, focado mais na qualidade de vida?
Devemos pensar sobre tudo isso enquanto ainda temos voz, enquanto pudermos sorrir e cantar. Assim como minha vó Linda, que, depois da tomada de decisão, passou muitos anos feliz na certeza de que seria respeitada.