Em contrapartida da velha expressão utilizada corriqueiramente na nossa língua “criado com a vó” para se referir a uma pessoa que teve a infância regada a mimos proporcionados por essas, eu fui uma dessas crianças. Por perder meu pai aos 3 anos, cresci perto dos avós. Mas o meu privilegio foi outro: sabedoria, valores e ensinamentos de vida.
Em 2000, entrei para faculdade de medicina. Ainda muito jovem e visionária, eu não tinha ideia dos caminhos a serem trilhados dentro da área. Era ingênua e com uma visão pragmática de que curaria as pessoas através de orientações e medicalização.
Até que meu amado vô Milton teve um acidente vascular encefálico em 2008. De um dia para o outro ele, que era um homem hígido e trabalhava diariamente mesmo aos 76 anos, ficou extremamente fragilizado, incapaz de caminhar sozinho e de se comunicar. Além de toda a tristeza que tomou conta de mim, surgiu um sentimento de impotência. Mesmo com todo o excelente trabalho de reabilitação de fisioterapeutas, enfermeiros, fonoaudiólogos, enfermeiras e médicos, meu avô nunca recuperou sua saúde de forma integral. Todo o esforço da equipe promoveu qualidade de vida e dignidade, mas o corpo dele tinha um limite e era preciso lidar com as restrições biológicas impostas. Qualquer poder da ciência não conseguiria trazer meu avô de volta.
O adoecimento me fez questionar as medicinas invasiva, curativa e a luta contra a morte. Me fez também ver que o que uma equipe multidisciplinar é capaz de oferecer tanto para a pessoa enferma, como para a família. Resignifiquei o tempo, enxerguei que dois anos e três meses de uma vida de cuidados não são “só” dois anos e três meses e sim uma possibilidade de novas formas de conviver e de amar. Ele permaneceu a maior parte do tempo em casa e fomos acompanhando a sua piora lenta, progressiva e inexorável.
Em 14 de outubro de 2010 meu vô faleceu. Neste dia, nós, familiares, estávamos mais do que preparados para a sua partida. Mas, o médico de plantão não estava. Meu vô morreu invadido, cheio de furos em seu pescoço na tentativa de pegar uma veia profunda e com um tubo na garganta, respirando com o auxílio de um ventilador mecânico. Saber que ele estava prestes a partir me deixou em uma ambivalência de sentimentos: por um lado era a aceitação de uma morte natural de alguém que adoeceu gravemente e de outro, a dor indescritível da perda. Mas, confesso que minha maior dor não foi esta, e sim foi vê-lo com intervenções médicas totalmente desproporcionais e a forma como foi comunicado seu óbito para mim. Definitivamente, aqueles profissionais não conseguiram me acolher.
Toda essa experiência me transformou e, depois da dor lancinante, encontrei meu caminho de paz durante minha residência de oncologia quando fiz um estágio de cuidados paliativos no Servidor Público Estadual. Lá, fui apresentada a uma área de atuação que é definida pela Organização Mundial da Saúde como: “Cuidados Paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos espirituais.”
Neste estágio aprendi o que já tinha constatado na minha história de vida: que sempre podemos cuidar. Entendi que doenças graves causam sofrimentos inevitáveis, mas que podem e devem ser acolhidas. Pratiquei outros cuidados fundamentais que são mais preciosos do que aparelhos prolongadores da vida. Aceitei a finitude e, que saber, até vi beleza nela.
Estou neste espaço para falar sobre a importância dos cuidados paliativos na boa prática em saúde, para contar minha história e tentar colaborar com um projeto de educação populacional entendendo os limites da medicina e, quem sabe, também da vida.