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No dia 26 de fevereiro completaram-se, soube-o eu tardiamente, os cem anos de nascimento de José Mauro de Vasconcelos. Foi o primeiro herói da minha adolescência de leitor. É claro que a literatura já se havia tornado, pra mim, uma razão de existência desde Monteiro Lobato. Eu achava a vida no Sítio do Pica-Pau mais interessante que aqui, e foi assim que germinou a ideia de criar mundos melhores, falsos pra maioria das pessoas mas tão reais aos sensíveis. No entanto, da leitura da obra de José Mauro (creio que li todos os livros) foi que me veio a ideia de ser escritor mesmo.

Havia um personagem na novela global Dona Xepa (primeira edição, sou um velho, respeitem) que tinha pretensões literárias. A mãe, feirante, sustentava o filho va-ga-bun-do numa faculdade de balbúrdia pra propiciar ao príncipe a carreira literária. Lembro do rapaz falando pra irmã (vivida pela diva Nívea Maria) que só duas pessoas conseguiam viver de literatura no Brasil: Jorge Amado e José Mauro de Vasconcelos. E que ele iria se tornar o terceiro, num tempo em que, num país culto, haveria leitores e escrever seria profissão.

Eu devia ter doze anos e via essas coisas. E sonhava ser, um dia, um escritor popular, amado pelo seu povo na proporção que eu amava meus autores prediletos. Mas sabia da impossibilidade de viver disso, e sair da pobreza era ponto de honra, que eu curto um vinho bom e uns caviar maneiro. Por isso, preferi encarar um trampo brabo na indústria de Cubatão. Cheguei a pensar de virar engenheiro ou fazer Senai, coisa que o filho da Dona Xepa, notório vagabundo, abominaria. É que eu tinha pudores de explorar minha mãe. Paguei dez anos na penitenciária industrial, de onde estudei pra virar advogado, o que exerci com gosto até o Brasil se tornar uma terra sem lei cujo ministro da Justiça apoia milícias e ditaduras, não lhe bastasse ser um juiz duvidoso e inculto, antiliterário. Passado o tempo da subsistência, voltei com fé ao sonho de ser escritor.

Na primeira prateleira da minha estante moram três autores populares: Jorge Amado, José Mauro e Chico Buarque. Depois da adolescência literária eu me agarrei com Machado, acima de tudo, e Rosa, Melville, Cervantes e Caterva (não vão ao Google procurar este último, por favor). A Academia torce o nariz pros ditos autores populares, mas é a estes que eu tomo de exemplo. Quero escrever pro meu povo, falar a língua dele, cultivá-la, avançar. Porque são estes os que preservam a Língua, esta maravilha que se cria nos guetos e não entre os muros de um saber pretensioso.

Jovem, eu tinha a intuição de que um dia, consagrado escritor, seria amigo de Zé Mauro. Tomaríamos pinga, sairíamos pra pescar, ir a puteiros, falar de livros. Quando ele morreu, em 1984, eu estava acorrentado numa fábrica, sem perspectiva, e sua morte significou o fim de um sonho profissional de menino. Fiquei sem escrever de meus 23 até os 45 anos. Jorge morreu também, e sem eu o ter conhecido. E tantos se foram. Cony, quase conheci pessoalmente. Acabei, com espanto, me tornando amigo de escritores que eram meus heróis e de outros que surgiram e são hoje e serão amanhã heróis de outros jovens leitores.

Minha saudosa amiga Helle Alves, decana jornalista que terminou sua carreira em Santos, um dia contou ter privado da amizade de José Mauro. Falei de minha adoração pelo escritor e ela me deu, pouco antes de morrer, uma relíquia: um exemplar do Arraia de Fogo autografado pra ela pelo autor. Lia-se na dedicatória: “para Helle Alves, com a amizade muito amiga do Zeca dos Mauros. São Paulo, 28/1/65”.

Ela me presenteou o livro, acrescendo outra frase na folha inicial: “Zé Mauro, repasso este livro para outro grande amigo que você não chegou a conhecer, Manoel Herzog. Helle”