Estamos todos bombardeados, a cada hora, pelas notícias sobro o Covid-19. É verdade? Sim. Mas é certo, também, que a maioria de nós procura essas notícias, seja na internet, na TV ou no rádio. Em geral lemos e ouvimos a mesma coisa, mas isso não nos impede de insistir na procura. O que acontece?
Vivemos, os humanos, num equilíbrio entre ordem o caos. Queremos um mundo organizado, onde podemos viver em segurança, trabalhar com algum retorno, criar nossos filhos, exercer nossas habilidades. A desorganização, o caos, a desequilíbrio, no entanto, estão sempre à espreita. Assistimos ao Tsunami da Ásia, à queda das Torres Gêmeas, a tantos massacres de serial killers, ao coronavírus. Há um misto de horror e atração por essas notícias, um fascínio que nos faz ficar pregados à TV ou com os olhos fixos na tela do celular. O que acontece?
Prossigamos com a ordem e o caos. Como nos mostram as histórias contidas nas tradições religiosas, a criação do mundo se dá quando um deus, ou uma criatura arquetípica, organiza o caos primordial. Essa estrutura de pensamento, digamos assim, está presente nas tribos primitivas e nas religiões modernas. Os estudos do psiquiatra Carl Gustav Jung, do historiador das religiões Mircea Eliade e, mais modernamente, do psicólogo canadense Jordan Patterson, reúnem esses relatos e mostram sua força, desde as primeiras concepções de mundo até o pensamento atual. As pesquisas das neurociências tendem a confirmar a presença de tais narrativas pré-moldadas em nosso cérebro. Vale consultar o livro “Tábula Rasa”, de Steven Pinker, para o estado da arte até 2002 (já havia muitos estudos, há quase vinte anos), e as bibliotecas virtuais para trabalhos científicos posteriores.
Um mundo totalmente organizado, sem nada que perturbe sua estabilidade, é de uma monotonia e imobilidade impensáveis, Em tal cenário, se nada perturba o que está dado, é impossível o andar da História. Por outro lado, a total balbúrdia não permite que os humanos estabeleçam regras mínimas para se relacionar e construir uma sociedade onde possam expressar suas caraterísticas mais próprias.
O caos à espreita, a serpente que oferece a maçã, algum risco no horizonte, sempre causam um sentimento ambíguo. Aquilo apenas entrevisto pode trazer o desequilíbrio, mas pode também nos ensinar novas formas de enfrentá-lo e retomar a vida. O possível mergulho no não-ser é uma necessidade para o movimento das coisas. Sua ameaça faz parte da vida humana desde sempre, a fera que espreitava nossos ancestrais, o vírus que ameaça entrar em nossos pulmões. A possibilidade do aniquilamento está enraizada na maneira de concebermos o mundo.
Hoje o caos é o coronavírus. Ele traz o horizonte distópico, lembra-nos os filmes catastróficos, o Blade Runner da minha geração e as tantas películas que o cinema produziu antes e depois, com o tema de iminente destruição do mundo. Mas lembra, também, toda e literatura escrita desde sempre, em que heróis lutam contra dragões, para restabelecer a ordem, em que o Bem e o Mal travam batalhas decisivas. Por sua ancestralidade e onipresença, não admira que eventos extremos nos horrorizem e nos fascinem, e assim é, gostemos ou não.
Quer dizer que estamos reféns dessas estruturas arcaicas? Sim e não. Somos feitos dessa matéria, ao que tudo indica, e está aí a enorme audiência das catástrofes a sustentar esse fato. Mas progredimos, sem dúvida. Somos mais racionais, presenciamos a grande aventura da Ciência, podemos ter novos pesos para colocar no outro prato da balança. Sabemos como proceder, lavamos as mãos, inventamos o sabonete e o álcool gel, construímos um fantástico sistema de comunicações. Sem esses recursos, sabe-se lá o tamanho da desgraça que nos assolaria.
Evoluímos também em outro nível, que poderíamos chamar de filosófico. No século XXI sabemos que não é tão fácil definir que é “Bem” e o que é “Mal”, muito menos “homens de bem”, esse perigo que nos ronda. Esse é um assunto complexo, que não cabe aqui, mas convém deixar assinalado.
Vejo muitos vídeos na internet dizendo para não entrarmos em pânico. Vejo outros criticando a mídia, dizendo que há um alarde desnecessário. Vi mesmo um vídeo que aconselhava as pessoas a se informarem apenas o essencial. Não nego o mérito de tais iniciativas. Mas é preciso saber de nossa atração pela iminência do acontecimento trágico. Olhamos para o noticiário calamitoso como se fosse uma novela, como algo distante, até que uma pessoa próxima seja vitimada. Então a coisa salta da tela e nos atinge de fato.
Já estamos cientes do que devemos fazer e como nos prevenir. Mesmo assim, insistimos em estar conectados, talvez esperando algum evento espetacular. Assim somos nós, enamorados do caos. Alguns, mais sensíveis, entram em pânico, e precisam ser cuidados. Outros desdenham o perigo, colocando todos em risco, e precisam ser alertados ou contidos. Felizmente a grande maioria é constituída de pessoas razoáveis, sinalizando que não estamos perdidos.
As constatações acima não amenizam as perdas, não pretendem passar uma mensagem pessimista ou otimista. Choraremos os mortos e nos rejubilaremos com a vitória sobre a doença. A nossa intenção é apenas despertar a compreensão de alguns aspectos da natureza humana, importantes para uma compreensão abrangente deste momento difícil.