Seguro o lençol com as duas mãos e faço-o voar sobre a cama. Vou ajeitando as pontas amarrotadas. Passo as mãos pelo tecido e sinto um carinho gostoso. Material bom, penso. Comprei numa loja famosa, numa promoção por conta da pandemia. Lençóis brancos, de linho. Ela adoraria. Seguro o edredom e repito o movimento. Coloco os travesseiros, primeiro os de dormir, depois os de enfeite. Enfio o pijama usado embaixo de um deles e me lembro que ela costumava dizer que eu arrumo a cama como um menininho, porque não deixo tudo simétrico e corretamente esticado. Fatalmente daríamos risada disso e eu a jogaria sobre a cama arrumada e a encheria de beijos. Sob seus protestos, eu lhe diria que sou uma versão ainda mais grudenta daquele gambá perdidamente apaixonado que persegue a gatinha. Daria uma lambida em seu nariz. Mas ela não está mais aqui e essa cena é só uma lembrança.
Chego à cozinha e coloco a água do café para ferver. Abro o armário e retiro as canecas. Vejo os copos de cerâmica japonesa e penso que são muito chiques. As minhas canecas são as mesmas desde sempre. Tínhamos muitas mais, mas na mudança guardei apenas quatro. O resto doei. Não havia percebido que guardei quatro canecas e não três. Recentemente, ganhei mais uma, com um desenho da América de Joaquim Torres Garcia. “Nosso norte é o Sul”. Começo a preparar a tapioca e me lembro que ela dizia que eu era o melhor tapioqueiro do mundo. Ela adorava as tapiocas crocantes por fora e macias por dentro. Quase posso ouvir sua voz dizendo para eu pôr um tomatinho também, junto com o queijo branco, para dar um tchans. Mas ela não está mais aqui e essa é só uma lembrança.
Caminho até meu quarto, escolho uma vela, não das grandes que duram mais tempo. Opto por uma de tamanho padrão. Separo também um incenso, um dos especiais, produzido no Butão, por monges que os vendem para financiar sua cultura. São caros esses incensos, mas são puros, e elas os adorava. Coloco-me diante do altar. Acendo-os, a vela e o incenso, e olho para o quadro que sua mãe confeccionou, um Orun de abayomis, as deusas e os deuses de pano me espreitam, bem como um Buda de madeira, adornado pelo meu Japamala, e uma pequena estátua de Shiva, com a qual ela me presenteou em um de meus aniversários. Queria saber onde ficou guardado o seu Japamala, que era irmão do meu porque os ganhamos de presente da mesma amiga. “Amore, onde está seu Japamala?”, eu perguntaria. Mas ela não vai me responder porque não está mais aqui e só me restam as lembranças.
Começo a preparar o almoço. Tempero as sobrecoxas de frango com laranja, porque era assim que ela gostava. Ponho para assar. As batatas ficam bem coradas. Os franguinhos com aquela casquinha crocante. É fácil de dar o ponto em nosso forno mineiro Layr, que ela escolheu porque era bom e barato. Eu acho que ela se orgulhava de suas raízes mineiras. Queria saber fazer seu molho de salada que deixava qualquer alface aguado maravilhoso, mas não sei. Não aprendi. Jamais o comerei outra vez. Seu gosto pelo arroz empapado foi transferido para nossos filhos. Eu me esforço para deixá-lo mais mole, mas sempre fica soltinho. Penso no vinagrete quente de lula, que ela aprendeu com seu pai, mas aperfeiçoou até atingir a perfeição. Cheguei a pedir que me ensinasse. De tanto a ver fazendo talvez tenha aprendido, mas não pretendo fazê-lo. O vinagrete de lula era uma das entradas de nosso restaurante particular, exclusivo para os amigos. Agora o restaurante não existe mais, ela não está mais aqui, só restam as lembranças.
Caminho pela praia até a esquina do Canal 3 e olho para o Paulistânia, com sua austeridade histórica. Conto os andares e tento me lembrar em qual deles nos hospedamos. Creio que foi no oitavo. O edifício está diferente. Foi reformado. Na praça de alimentação, procuro pela mesa de alvenaria em que nos sentamos enquanto as crianças brincavam no parquinho. Sento em um, depois em outro. Não tenho certeza em qual deles ela me disse que estava adorando aquele pôr do sol, o chopinho gelado, as crianças soltas e felizes. Bendito fim de semana que nos inspirou a virmos morar em Santos. Quase posso senti-la segurar minhas mãos sobre a mesa, acariciando-me com seus dedos longos e finos. Mas ela não está mais aqui, jamais sentirei seu toque outra vez, e só me restam as lembranças.
Uma companheira de trabalho escreve perguntando se tenho em minha biblioteca algum livro de Julián Fuks. Eu digo que, para mim, o melhor é A Resistência, mas tenho A Ocupação, que é excelente também. Digo que empresto com o compromisso de que me devolva. Retiro o livro da estante, folheio-o, e percebo que não é meu. Está dedicado a ela. Foi um presente para ela. “Na esperança de que contra toda dor do corpo e do mundo, as palavras nos aproximem. Um beijo, com carinho, Julián”. De um jeito torto, talvez se aplicarmos o cunhadismo à equação, eles eram parentes, porque o irmão dela é casado com a irmã da mulher de Julián. Talvez também sejamos um pouco parentes por pertencermos à mesma geração, amarmos literatura e termos lutado juntos por um Brasil melhor. “Todo homem é a ruína de um homem”. É duro constatar que não estaremos reunidos outra vez, que nenhuma luta futura contará com sua sensata presença, pois ela não está mais aqui, e só me restam as lembranças.
Meio da tarde, a amiga chega para trabalharmos juntos, mas se esqueceu dos sachês de chá que eu havia lhe pedido. O dia está frio. A chuva não para. Eu não queria tomar os chás franceses que eram dela e deixo em cima da bancada do armário da cozinha desde que viemos morar nesta casa. Mas a amiga me conta que foram presentes seus para ela. “Antes de morrer ela me disse que eu poderia tomá-los desde que fosse com você”. Coloco as ervas na chaleira, acendo o fogo, e separo aqueles dois copos de cerâmica japonesa, um claro e outro escuro, que ela comprou no bairro da Liberdade para nós. Era para ela estar aqui no meu lugar, penso. O cheiro de flores preenche o ar. Beber seus chás, nos copos que ela tanto gostava, com uma amiga querida, seria uma forma de tê-la por perto? Algo pode efetivamente amenizar a dor da ausência? Algum dia voltaremos a nos encontrar? São tantas as perguntas e só uma inconveniente certeza: ela não está mais aqui e só me restam as lembranças.
Recebo uma mensagem pedindo que eu preencha um formulário para participar de uma atividade no próximo fim de semana. Estado civil: viúvo. Pessoa a quem contatar em caso de emergência? Penso e escrevo: não tenho. É, não tenho, porque eu sempre colocava o nome e o telefone dela. E vice-versa. Sempre estávamos disponíveis um para o outro. E agora? Para quem poderiam ligar caso eu sofra um mal súbito? Para minha mãe, meu pai, algum amigo ou amiga? Reafirmo que já não tenho mais um telefone de emergência para oferecer, embora seu número ainda esteja ativo e seu celular exatamente com a configuração que deixou. Não quero formatá-lo, como acabei fazendo com seu computador, um MacBook que estava cheio de vírus. Do computador, eu troquei o HD por um SSD e assim deixei tudo que havia dentro intacto, caso um dia ela regresse e queira-o de volta. A história do formulário me faz pensar que as últimas caixas da mudança são as que guardam suas roupas. Elas me espreitam, as caixas, sobre o armário do meu quarto, um armário que ela escolheu em uma loja online e que tem três enormes portas e um espelho gigante. Maldito formulário que esfrega na minha cara que ela não está mais aqui e estou só com as minhas lembranças.
Anoitece e o frio se intensifica. Hora de voltar à cozinha, para preparar o jantar. Uma refeição para cada um. Para a filha, uma crepioca. Para o filho, arroz, feijão e ovo. É o que ele come. Esquento um caldo que comprei em um restaurante vegano. Um caldo laranja. Provo. Está bom. Nunca fui muito de sopas. Ela adorava. Das sopas dela eu gostava, porque além de saborosas sempre vinham com algum complemento especial: um fio de limão ou creme de leite, uma raspa de laranja, uma farofinha de castanha do pará, queijo ralado, cheiro verde. Lembro que sobrou metade da laranja que usei para temperar o frango no almoço e resolvo borrifar um pouco na minha tigela. A acidez melhora a sopa. Tudo que eu queria é que ela estivesse aqui para fazermos juntos um escalda-pés, assistindo a uma série na televisão. Há várias que vimos juntos e que terão continuidade. Penso nisso e meu coração dói de saudade. Ela não vai vê-las, porque ela morreu, mas segue viva em minhas lembranças.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Folha Santista