Oi meu amor,
Sábado faz 100 dias que você morreu e eu ainda estou tentando me acostumar com a sua ausência. Por isso resolvi lhe escrever esta carta, cujo objetivo não é falar de questões íntimas, principalmente porque decidi publicá-la aqui no espaço que agora ocupo semanalmente na Folha Santista.
Quero te contar da nossa cidade e do mundo. Talvez dividir um pouco da minha perplexidade, como costumávamos fazer cotidianamente. Nesta mesma semana, outra centena trágica também está sendo lembrada: a do número de brasileiros mortos vítimas do COVID-19.
Sim, atingimos essa marca absurda de mais de 100 mil vidas perdidas. O governo federal tem reagido a esse marco com desprezo, desfaçatez e incompetência. No caso do nosso estado, São Paulo, o governador chegou até a aventar o reinício das aulas presenciais, mas os professores estão resistindo bravamente.
Aqui em Santos, no dia 11 de agosto, superamos a marca de 500 mortes, acredita? Quinhentas famílias que não puderam ter um velório como manda o figurino, com abraços, choro, risadas, partilha de memórias, enfim, que terão de se contentar com um breve adeus.
Nossa querida amiga, aquela de sensibilidade especial, escreveu-me esta manhã relatando um sonho que teve conosco. Nesse sonho, você, que tinha se vestido ao lado dela com lindas roupas brancas, estava muito animada porque sabia que viria encontrar as pessoas que amou neste plano. Era uma reunião, uma festa talvez, com você como anfitriã, recebendo várias pessoas. Eu estava sentado à mesa, ao seu lado, também ciceroneando os convidados, mas chegou o momento de sua partida, para seguir sua jornada, e eu então me entristeci.
Escreve nossa amiga: “ela avisou que seu tempo ali terminava e precisava seguir mas que amava a todos…você pediu que eu sentasse ao seu lado e conversamos por algum tempo até que chegaram outras pessoas que queriam também falar contigo. Neste instante você me disse que precisava falar só comigo e pediu que eu o acompanhasse. Nós saímos daquele ambiente onde Lia já não estava e fomos sentar numa parte externa, numa mesinha de um café onde conversamos por muito tempo. Era como se eu tivesse te explicando um pouco sobre a vida fora da matéria”.
O sonho tinha outros elementos, mas me basta partilhar este trecho que descreve essa reunião da qual você teve de se ausentar. Porque essa imagem explica como tenho me sentido em relação ao mundo, minha tristeza contínua, esse desconforto por estar perdido num lugar que antes era agradável porque estávamos juntos. Isso aqui se tornou uma festa estranha. Muito estranha. E já não tenho mais seu colo, meu abrigo anti-melancolia, para escapar. Como seguir adiante num mundo em que a humanidade parece ter abdicado de si mesma? Em que Bolsonaro preside nosso país e está angariando novos apoios mesmo com todas essas mortes?
De fato, tenho tentado entender a vida fora da matéria, até para relativizar um pouco a relevância dessa conjuntura nefasta. Me alimenta a ideia de que um dia voltaremos a nos encontrar. Pode levar muitos anos, ou poucos dias.
A bem da verdade, a forma que encontrei para lidar com tudo isso é carregar você dentro de mim, no lugar mais profundo. Por onde quer que eu vá. Queria voltar ao terreiro de umbanda, aquele da Praia Grande, em que o Pai de Santo me confortou, mas tenho receio. Acho que foi por isso que fiquei tão comovido, domingo, ao olhar pela porta a missa da Igreja da Pompeia e ver a gente toda rezando.
Eu tinha ido buscar um frango assado para o almoço de dia dos pais, acompanhado de nossos queridos Jay, Ju e Tom. Que bom que temos amigos, tantos, que conseguem ir além de si e oferecer alento, conforto, carinho. A presença é tão importante. A dedicação. Sem amigos os dias de luto e isolamento social seriam ainda mais difíceis.
Tenho gostado muito de morar aqui no Gonzaga, nesta casinha que alugamos quando você ainda estava viva e que começamos a arrumar juntos. Pena não ter dado tempo de você passar uns dias por aqui.
O mais legal é caminhar pelo bairro. De sábado tem a enorme feira livre da Glicério, mas a tenho evitado por conta da pandemia. Estava super lotada da última vez que fui espiá-la. Na rua Pernambuco, descobri somente semana passada, o pessoal monta uma verdadeira peixaria, com várias opções frescas – consegui imaginar você indo buscar uma pescadinha para preparar no papelote.
Achei uma lojinha de produtos orgânicos, com opções de produtos à granel, e em sua homenagem comprei feijão bolinha. Cozinhei e ficou uma delícia. Acredito que é mais seguro fazer compras assim do que nos supermercados.
Na Merlin, tenho comprado produtos para as bruxarias. Eles entregam em casa. As velas e os incensos têm estado constantemente acesos por aqui. Você vê as chamas, sente as fragrâncias?
Ah! As plantas, que sofreram tanto com a mudança, estão se recuperando. Todas. Como naquele mantra que criei para nós: cuidado é cura. Até a samambaia, que parecia não se safaria, está rebrotando.
Outro dia, a Carmem mandou uma trepadeira, que vou pendurar na fachada da casa, amarrando uns arames para permitir que ela se espalhe. Tenho notado que os passarinhos estão gostando do quintal, fazendo visitas mais frequentes. Sempre os ouço nos meus momentos de meditação. Espero que, em pouco tempo, quando conseguir enchê-lo de plantas, também venham nos visitar as borboletas, de diferentes cores e tamanhos. Quem sabe elas não te trazem até aqui, ao esconderijo que é meu e dos nossos filhos, por isso sempre será seu também.
Neste sábado, quero fazer um ritual para lembrar os cem dias de sua morte. Um ritual de contra-feitiço, que sopre vida sobre essa pulsão de morte que nos cerca, porque estamos realmente precisando. Você me conduz?
Com saudade,
Rodrigo.